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Extrema pobreza: Pretos, pardos, mulheres e crianças são os mais vulneráveis no Brasil

Estudo do IBGE aponta que, na ausência dos benefícios sociais, a taxa nacional de mulheres pretas e pardas em situação de pobreza chegaria a 42,4%

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Sempre na dianteira dos rankings mundiais de desigualdade, o Brasil conseguiu ao menos reduzir os indicadores de pobreza na primeira década do século XXI e sair do vergonhoso Mapa da Fome da ONU. A conquista viu-se ameaçada pela crise que se arrasta desde a deposição de Dilma Rousseff, mas acabou ferida de morte pela nefasta política de austeridade fiscal aprofundada por Paulo Guedes e pela pandemia de Covid-19. Ao cabo, o País chegou à metade do mandato de Jair Bolsonaro com um em cada quatro habitantes vivendo em situação de vulnerabilidade, atesta a Síntese de Indicadores Sociais, divulgada em dezembro pelo IBGE.

No fim de 2020, ao menos 50 milhões de brasileiros viviam na pobreza. Destes, 12 milhões estavam em situação miserável. Dois fatores possibilitaram, porém, uma tímida melhora nos indicadores na comparação com 2019: os bons resultados de alguns estados do Norte e Nordeste e o pagamento do Auxílio Emergencial pelo governo a partir de abril.

 

Em sua análise, o IBGE utilizou os parâmetros do Banco Mundial que estabelecem a situação de pobreza para quem sobrevive com até 5,5 dólares por dia e de pobreza extrema para quem vive com até 1,9 dólar. Considerando esse critério em 2020, Norte e Nordeste tiveram quedas em relação a 2019, enquanto as demais regiões apresentaram aumento. “O resultado geral do Brasil foi muito influenciado pelo que aconteceu nas regiões Norte e Nordeste”, diz André Simões, pesquisador do instituto. Segundo o estudo, a incidência da extrema pobreza caiu nas regiões Norte (de 11,9% para 8,5%) e Nordeste (14,2% para 10,4%), mas aumentou nas regiões Sudeste (3,3% para 3,6%), Centro-Oeste (2,8% para 2,9%) e Sul (2,3% para 2,8%).

A extrema pobreza aumentou no Sul, no Sudeste e no Centro-Oeste, revela estudo do IBGE

Ao todo, Norte e Nordeste reduziram a pobreza entre 2019 e 2020 em 6,3% e 4,1%, respectivamente. Os estados que obtiveram maior êxito foram Sergipe (-8,9%), Pará (-8.8%), Piauí (-6,7%) e Maranhão (-5,6%). Segundo a Secretaria de Planejamento do Piauí, historicamente um dos estados mais pobres, mas que em 2020 reduziu de 45,1% para 38,4% o porcentual de sua população vivendo abaixo da linha da pobreza, cerca de 220 mil cidadãos piauienses tiveram aumento de renda no período, apesar da pandemia. Algumas medidas tomadas pelo governo estadual foram fundamentais para isso, como a disponibilização de 4 milhões de reais para a aquisição e distribuição de cestas básicas às famílias em situação de maior vulnerabilidade. Por intermédio de um banco de alimentos, foi investido 1,5 milhão de reais na compra direta de legumes, verduras, frutas e cereais produzidos por agricultores familiares, o que beneficiou cerca de 20 mil famílias. As ações continuaram em 2021 com a concessão de um benefício de 200 reais para 5 mil famílias piauienses que não recebem auxílio de nenhum outro programa social.

O governador do Piauí, Wellington Dias, ressalta que o mais importante é dar perspectivas de saída da pobreza em médio ou longo prazo para quem recebe o auxílio. “Lançamos um cartão de transferência de renda para quem está fora de todos os programas, não está no Bolsa Família, não tem aposentadoria rural… Aí a gente alcança essa pessoa, transfere para ela uma renda que tem inicialmente um prazo de seis meses e nesse período a gente desafia municípios, estado e setor privado a encontrar uma alternativa definitiva para aquela família a partir da sua realidade. Se a gente tem um direcionamento das ações para as pessoas, isso dá resultado”, explica.

Fonte: Síntese de Indicadores Sociais – 2021

Dias critica o governo federal por ter abandonado quem mais precisa. “É lamentável o desmonte do programa da agricultura familiar, do crédito fundiário, da reforma agrária, de apoio ao homem do campo e às pessoas que vivem nas periferias”, diz. Para ele, “dar a mão um ao outro e encontrar um caminho” é o objetivo dos governadores da região. “Por isso que no Piauí e em outros estados do Nordeste, como o Maranhão, estamos entre os que mais tiraram a população da miséria e da pobreza no Brasil, mesmo numa situação dramática como a que estamos vivendo nos últimos anos.”

No Maranhão, outro ente nordestino historicamente vitimado pela miséria, o bom resultado obtido em 2020 ainda não foi suficiente para livrar o estado do primeiro lugar no quesito pobreza extrema, com 14,4% de sua população nessa condição. Na sequência aparecem Amazonas (12,5%), Alagoas e Pernambuco (ambos com 11,8%). No entanto, todos esses estados conseguiram uma redução na comparação com 2019, quando os porcentuais eram de 21,3% no Maranhão, 15,7% em Alagoas, 15% no Amazonas, e 13,6% em Pernambuco. O governador maranhense, Flávio Dino, comemora a redução da pobreza como um todo no estado: “Atingimos o menor patamar de pobreza desde 2012. Tradicionalmente, o Maranhão sempre esteve na casa dos 55% e chegamos a 48%”.

No Maranhão de Flávio Dino, a extrema pobreza recuou 5,6%. Diante do caos, Guedes só pensa em cortar despesas

A Síntese de Indicadores Sociais revela ainda que a redução da pobreza em 2020 somente foi possível graças ao impacto da concessão de benefícios sociais durante a pandemia, sobretudo no período inicial de quatro meses, quando o Auxílio Emergencial do governo federal teve valor mínimo de 600 reais mensais. No Brasil, de 2019 para 2020, recuaram os porcentuais­ da população em situação de pobreza (de 25,9% para 24,1%) e pobreza extrema (de 6,8% para 5,7%). No entanto, o estudo aponta que, se não fossem os auxílios emergenciais federal e estaduais, o cenário de desemprego, alta da inflação e paralisação econômica vivido pelo País teria feito esses números saltarem para 32,1% e 12,9%, respectivamente.

A utilização pelo IBGE dos mesmos critérios de análise para o período de 2012 a 2019 revela que, sem os auxílios sociais concedidos ao longo dos anos, as taxas de pobreza e extrema pobreza no País oscilariam para cima na faixa entre 2 e 3 pontos porcentuais. Já em 2020, a ausência simulada dos benefícios sociais implicaria aumento de 8% na pobreza e de 7,2% na pobreza extrema.

Sem os auxílios da União e dos estados, um terço da população estaria na pobreza

“No Brasil, o mercado de trabalho é responsável por 70% da renda da população. Por esse mercado ser mais fraco no Norte e Nordeste, nessas regiões existe maior precariedade salarial e informalidade, além de mais pobreza. Em 2020, com o País como um todo impactado pela pandemia, a concessão de benefícios sociais foi ainda mais impactante no Norte e Nordeste porque nas duas regiões há um maior número de pessoas em situação de vulnerabilidade social”, explica Simões.

Outro detalhe importante é que o valor de 600 reais concedido nos primeiros quatro meses de Auxílio Emergencial – que pôde chegar a 1,2 mil reais em casos de mulheres chefes de família – era sensivelmente alto se comparado ao praticado no Norte e Nordeste do Brasil. “Foi um valor três vezes maior do que, por exemplo, a média do Bolsa Família nos anos anteriores à pandemia. Além disso, com uma população maior em situação de pobreza, as duas regiões tiveram também, relativamente, o maior número de ­pessoas beneficiadas. Isso trouxe um impacto positivo à renda.”

O técnico do IBGE explica que tanto a Síntese de Indicadores Sociais quanto a Pnad Contínua, também realizada pelo instituto, não analisam de forma separada e específica em suas respectivas coletas de dados os impactos dos auxílios emergenciais estaduais e municipais. “Mas eles, certamente, contribuíram para conter o aumento da pobreza no Brasil inteiro e, particularmente, no Norte e Nordeste”, acrescenta.

Fonte: Síntese de Indicadores Sociais – 2021

A desigualdade, assim como o impacto dos auxílios emergenciais durante a pandemia, não se deu somente em termos regionais. O estudo do IBGE mostra que as principais características das pessoas em situação de pobreza ou extrema pobreza no Brasil são aquelas há muito conhecidas. Pretos, pardos, mulheres e crianças de até 14 anos formam os grupos em maior vulnerabilidade. Em um cruel retrato da tragédia social brasileira, a pesquisa mostra que 17,3% das pessoas que convivem com a miséria no País são moradoras de lares comandados por mulheres pretas, sem cônjuge e com filhos menores de 14 anos.

O estudo também aponta que, na ausência dos benefícios sociais, a taxa nacional de mulheres pretas e pardas em situação de pobreza chegaria a 42,4%. “O evidente corte por raça, cor e sexo continuou o mesmo de antes de 2020. Isso fez também com que as pessoas pretas e pardas estivessem mais elegíveis a receber os benefícios”, diz Simões.

Em 2020, considerando os dois sexos, entre pretos e pardos as taxas de pobreza (31%) e extrema pobreza (7,4%) eram o dobro das registradas entre brancos (15,1% e 3,5%). Analisadas separadamente, as mulheres pretas e pardas tiveram as maiores taxas (31,9% e 7,5%). Já o corte por faixa etária mostra que 38,6% das crianças brasileiras de até 14 anos atravessaram o ano de pandemia na pobreza e 8,9% na pobreza extrema. Entre os idosos com mais de 65 anos, as taxas foram de 8,8% e 2,5%, respectivamente. No quadro simulado com a ausência dos benefícios sociais, a extrema pobreza teria atingido 17% das pessoas pretas e pardas e 7,6% das pessoas brancas, mais que o dobro do oficialmente registrado.

A Síntese de Indicadores Sociais do IBGE analisa somente a pobreza monetária, que é aquela decorrente da falta de acesso a trabalho e renda. Em sua metodologia, o estudo não leva em consideração as demais dimensões e aspectos que compõem a pobreza estrutural no Brasil, como moradia, saneamento básico e acesso à educação e saúde, entre outros. O quadro brasileiro é complexo e, para que o País chegue um dia à condição de dar dignidade social à totalidade de seu povo, será preciso avançar para muito além dos auxílios emergenciais. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1190 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JANEIRO DE 2022.

CRÉDITOS DA PÁGINA: JOÃO PAULO GUIMARÃES/AFP – GOVMA E ETTORE CHIEREGUINI/AGIF/AFP

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