Arthur Chioro

Ex-ministro da Saúde

Opinião

assine e leia

É preciso conter a pulsão de morte que se expressa em Bolsonaro

No Brasil, para além da incapacidade do Ministério da Saúde, seguimos tendo de enfrentar o nosso maior pandemônio: o presidente

É preciso conter a pulsão de morte que se expressa em Bolsonaro
É preciso conter a pulsão de morte que se expressa em Bolsonaro
Foto: Miguel SCHINCARIOL / AFP
Apoie Siga-nos no

Chegamos ao início de 2022 com diminuição consistente do número de casos e de óbitos por Covid-19. Isso se deve à adesão da população à vacina, uma vez que 67% dos brasileiros já estão com doses completas e 11% receberam uma dose do imunizante.

A situação ainda não está sob controle e as medidas sanitárias não podem ser abandonadas ou relaxadas, pois um terço da população ainda está desprotegida, não vacinada ou sem a segunda dose. A maior prova disso é que, com as festas de fim de ano, há um considerável aumento de casos, indicando a propagação do vírus.

As novas ondas de casos e óbitos nos Estados Unidos e na Europa servem como alerta, ainda mais com a expansão da Ômicron entre os não vacinados, o que levou vários países a retomarem medidas de restrição da circulação, obrigatoriedade do uso de máscaras, adoção de passaporte vacinal e até vacinação obrigatória.

No Brasil, para além da incapacidade do Ministério da Saúde de coordenar as ações e de proteger e recuperar sistemas de informações afetados por hackers, seguimos tendo de enfrentar o nosso maior pandemônio: o presidente da República.

Se não bastasse a tentativa de impedir a adoção do passaporte vacinal, fundamental para o controle das fronteiras, coloca-se agora o presidente contra a vacinação de crianças de 5 a 11 anos.

Os reflexos da postura já se deixam antever no resultado da consulta pública feita pelo Ministério da Saúde, divulgado na terça-feira 4. De acordo com a pasta, a maioria das cerca de 100 mil pessoas que se manifestaram “se mostrou concordante com a não compulsoriedade da vacinação” para crianças.

O uso do imunizante para essa faixa etária foi aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a partir da comprovação da eficácia e segurança dos testes apresentados pelo fabricante. A decisão é ainda fruto da observação de sua aplicação em diversos países. A avaliação, feita com rigor técnico, conta com a aprovação da Câmara Técnica Assessora de Imunização do Ministério da Saúde e de sociedades médicas, como as de Infectologia, Pediatria e Imunizações.

Bolsonaro, em nova cruzada de estupidez, tratou de lançar dúvidas sobre a vacina para as crianças, vociferando opiniões infundadas e fake news. Mas, desta vez, ele foi além. Em cena explícita de assédio moral e abuso de autoridade, declarou que solicitaria o nome dos que atuaram no processo de autorização, postura intimatória e de constrangimento público a servidores da Anvisa no exercício de suas funções.

Tal ingerência é inadmissível e deve ser objeto de repulsa da sociedade. Constitui-se um abuso de responsabilidade, atitude repugnante e que coloca em risco a integridade física dos dirigentes e servidores públicos da Anvisa, que passaram a sofrer ameaças de milícias digitais.

A Anvisa tem independência administrativa, estabilidade de seus dirigentes durante o período de mandato e autonomia financeira previstas em lei. Seus servidores desempenham atividades essenciais. Em 22 anos de existência do órgão, nunca se viu tamanha ingerência na maior agência reguladora brasileira, responsável pela Coordenação do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS). Vigilância sanitária é uma política de Estado, exercida como função integrante e indissociável do SUS, com fundamentos legais previstos na Constituição Federal.

O objetivo principal da vigilância sanitária é proteger e promover a saúde da população, garantindo acesso, segurança e qualidade de produtos e serviços. Para isso, a Anvisa estabelece normas, propõe, acompanha e executa políticas, diretrizes e ações de vigilância sanitária. Entre os diversos bens e produtos submetidos ao controle e fiscalização estão os imunobiológicos e suas substâncias ativas, como é o caso das vacinas.

Mais de 618 mil vidas foram perdidas até aqui e parcela significativa delas poderia ter sido poupada se o governo federal fizesse a sua parte. É preciso garantir aos servidores da saúde, que lutam cotidianamente para salvar vidas, condições necessárias para que exerçam suas funções de forma estritamente técnica, com independência e imparcialidade, tomando as decisões necessárias, baseadas em princípios científicos e éticos.

É preciso conter a pulsão de morte que se expressa em cada gesto dessa criatura nefasta que habita, desde 2019, o Palácio do Planalto, e que se dedica a impor toda ordem de dificuldades para os que ousam se colocar em defesa da vida.

É hora de dar um basta à bestialidade. Triste Ano Velho que findou. Feliz Ano Novo para todos (ainda que seja para saudar 2023). •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1190 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JANEIRO DE 2022.

ILUSTRAÇÃO: BAPTISTÃO

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo