

Opinião
Chegou o ano da Copa
Penso que o caminho traçado por Tite foi o de buscar solidez no espírito da Seleção


No calendário do futebol brasileiro, o ano de Copa do Mundo tem início ao mesmo tempo que o calendário pendurado na parede. Na Europa, o começo do ano abre a janela das partidas de inverno e dá a largada para as contratações no meio da temporada. Trata-se de um início de ano agitado, em meio a crises de todo tipo: sanitárias, político-eleitorais, econômicas etc.
A tradicional Copa São Paulo de Juniores mostra a cara do gigante adormecido em sua mania de grandeza. São mobilizados, nada mais nada menos, que 128 times divididos em 32 chaves espalhadas pelo extenso Estado brasileiro.
O torneio materializa-se em ônibus que vão cortando o País em todos os sentidos, com a paisagem se alternando entre alagamentos monstruosos e secas causticantes. A imagem me faz lembrar até da época da ditadura militar e dos meus tempos de jogador. À altura, nós, jogadores dos cem times no “Nacional”, nos encontrávamos a toda hora nos aeroportos, dentro dos aviões e nos hotéis.
Lembro que as equipes foram divididas entre as companhias aéreas de maneira absolutamente primária, gerando viagens absurdas, por trajetos enlouquecedores. Acontecia de um time voltar de um jogo desgastante no calorão úmido de Manaus, via Mato Grosso, com escala demorada em São Paulo, para chegar ao Rio quase na hora de embarcar de novo. Ao menos, era de avião. A aventura dos garotos na luta por um lugar ao sol continua.
No outro extremo deste tempo de contrastes, estamos em um ano de Copa do Mundo em data alterada pelas condições climáticas do Catar, país sem maior tradição no futebol, mas que entrou na onda financeira dos grandes negócios, tornados uma marca indelével do esporte moderno. Foi pelo viés do negócio que, nos anos recentes, o futebol chegou ao Japão, à Venezuela, aos Estados Unidos e a outros países.
Nos lugares onde esse esporte tem tradição, a onda vai levando cidadãos a comprarem clubes para transformá-los em empresas S.A. e suas variantes. O futebol brasileiro, em segundo plano nesse mundo de negócios, vai fazendo as vezes de “barriga de aluguel”, gestando as promessas de craques daqui e de outros países da América Latina.
Não deixa de ser bonito ver, nesse processo, os times adotando equatorianos, peruanos, colombianos, venezuelanos. Chato, por outro lado, é ver os nossos clubes sendo vendidos em “xepas” de feiras, na “bacia das almas”.
Volta e meia aparecem tentativas de alterar as formas de organização vigentes. Surgiu, há pouco tempo, a proposta de formação da Supercopa. Agora se fala em uma composição da Uefa (clubes europeus) com a Conmebol (nome esquisito). E vão sendo ouvidos, simultaneamente, comentários sobre uma proposta de Copa do Mundo de dois em dois anos, que soa, apenas, a mais uma forma de explorar ao máximo esse filão dourado.
E o que esperar da Seleção Brasileira nesta Copa? Sei que há desconfiança das pessoas em relação ao nosso escrete, mas vejo-o com esperança, diante do longo tempo de trabalho da comissão encabeçada por Tite. As dúvidas, naturalmente, surgiram em razão das últimas apresentações da Seleção, bastante irregulares e com baixo rendimento.
Nesse meio de caminho, o que me pareceu anormal foi o boato da mudança de treinador por ingerência da política na Confederação Brasileira de Futebol (CBF). E digo mais: não morro de amores por Tite, mas discordo, historicamente, da insistência na escolha de treinadores com perfil autoritário, como se devessem eles ser “comandantes” cuja meta é ter “domínio” sobre o elenco. É extensa a lista de nomes forjados a partir dessa ideia falsa. Mas os melhores treinadores foram sempre homens de diálogo.
Penso que o caminho traçado por Tite foi o de buscar solidez no espírito da Seleção. Tanto que, neste momento, a turma se espanta ao se aventar a possibilidade da convocação de Paulinho, Coutinho, Renato Augusto e outros homens de confiança que o treinador, mantendo coerência, não abandona. Mas ele, obviamente, não é obrigado a levá-los para o Catar se estiverem superados.
Enquanto isso, com a classificação alcançada com folga, Tite pode dar oportunidade às revelações – nossa terra, felizmente, é sempre pródiga nelas. Resta, aos que enxergam com maus olhos a Seleção, o argumento da grande diferença dos conceitos entre o futebol europeu atual e o nosso, e a falta de confrontos que coloquem à prova esse possível abismo.
Começamos, enfim, um ano decisivo, para o futebol e para a vida brasileira. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1190 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JANEIRO DE 2022.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.