Artigo
Melancolia
O primeiro sentimento que o Brasil de hoje em dia inspira no observador estrangeiro é o de tristeza. Profunda tristeza provocada pela constatação de como, em poucos anos, o País dilapidou um patrimônio de prestígio e liderança internacional de maneira tão surpreendente quanto autodestrutiva. Em […]


O primeiro sentimento que o Brasil de hoje em dia inspira no observador estrangeiro é o de tristeza. Profunda tristeza provocada pela constatação de como, em poucos anos, o País dilapidou um patrimônio de prestígio e liderança internacional de maneira tão surpreendente quanto autodestrutiva. Em 2009, durante a reunião do G-20 em Londres, Lula era elogiado publicamente como “o político mais popular da Terra” pelo então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. “Esse é o cara” …“Eu adoro esse cara!”, ele comentou com o primeiro-ministro da Austrália, Kevin Rudd, dirigindo-se ao brasileiro. E é de conhecimento até de seus detratores que o carisma e a autoridade de Lula eram apreciados não só pelos norte-americanos, mas em qualquer canto do globo.
Em 2021, em Roma, por ocasião do G-20, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, é completamente isolado por todos os principais líderes mundiais. O anfitrião, Mario Draghi, chefe do governo italiano, evita até de lhe apertar a mão. As reuniões bilaterais resultam completamente ausentes na agenda do brasileiro e os únicos encontros informais que ele teve na ocasião foram com o argentino Alberto Fernández, que o cutucou sobre futebol, e com o turco Recep Erdogan, que, em pé, assistiu silente a um breve solilóquio do brasileiro, enquanto o próximo chanceler alemão, Olaf Scholz, lhe voltava as costas.
CLAUDIO BERNABUCCI: É formado em Ciência Política pela Universidade La Sapienza, trabalhou para a ONU e para a prefeitura de Roma. É colaborador de CartaCapital.
Muitos sinais indicam que uma onda mundial de recusa ao estilo arrogante e aos métodos de governo perigosamente extravagantes que Donald Trump inaugurou nos Estados Unidos seja destinada a chegar também às costas brasileiras. Ao mesmo tempo, o apoio interno a Bolsonaro está mais baixo que nunca. De tal forma é bem possível imaginar que também para o presidente brasileiro, depois de tantos desastres, a reeleição em 2022 se revelará empreitada bastante difícil.
No fundo, o mundo gostaria que Bolsonaro e o bolsonarismo acabassem rapidamente e, com certeza, que o capitão reformado do Exército brasileiro ganhasse espaço insignificante nas páginas da história: como fenômeno de folclore político, gerado por uma sociedade volúvel, confusa e manipulada.
Um erro que, de qualquer maneira, foi pago a um alto preço pelas classes mais vulneráveis: dados recentes mostram que nunca o País foi tão desigual, com milhões de desempregados e índices de pobreza a aumentar a cada dia.
O MUNDO GOSTARIA QUE BOLSONARO E O BOLSONARISMO PASSASSEM LOGO
A partir dessa reflexão, a tristeza inicial confessada por quem escreve mistura-se à indignação ao observar como a dinâmica de poder que levou o Brasil à tragicômica experiência de Bolsonaro não é contingente, mas vem de longe: no mínimo, remonta à vitória de 2002 do operário metalúrgico que teve a ousadia de tentar modificar a estrutura de classe no Brasil.
A experiência foi conduzida com prudência e gradualismo, feito de um esforço sobre-humano ao tentar conciliar o que hoje na história do Brasil ainda aparece inconciliável: o fim da casa-grande e da senzala. Não obstante, as resistências – abertas, mas sobretudo ocultas – à liderança de Lula conseguiram sucessos extraordinários em todos os setores da vida pública e contribuíram como nunca as melhores performances do setor privado, que enriqueceu vertiginosamente naqueles inesquecíveis oito anos. O País renasceu social e culturalmente, o desemprego reduziu-se aos mínimos históricos, a economia crescia substancialmente, enquanto a crise do subprime de 2008 provocava seriíssimos problemas mundo afora, até nos países mais estruturados do chamado Primeiro Mundo. Anos, aqueles, de absoluta hegemonia neoliberalista, durante os quais no Brasil aconteceu o inesperável: Lula e seus governos tiraram milhões de pessoas da pobreza e, pela primeira vez, a distância entre ricos e pobres diminuiu, único exemplo no mundo. Pecado, este, imperdoável pelos donos do poder.
Aproveitando das fraquezas políticas da gestão Dilma Rousseff e da sua falta de humildade em ocasião da reeleição (em 2014, ela pretendeu o segundo mandato sem perceber os próprios limites de liderança, enquanto um terceiro mandato de Lula poderia ter revertido as relações de força que se revelaram desfavoráveis), a oligarquia brasileira montou uma conspiração sem escrúpulos, armando um processo de impeachment sem fundamento que a tirou da Presidência e, em seguida, recorrendo aos serviços complacentes de magistrados indignos, levou para a cadeia o verdadeiro alvo: o ex-presidente Lula, ainda campeão dos consensos populares.
Os grilhões brasileiros são inquebráveis
Claro, na política como na vida, as vitórias de uma parte dependem não só dos próprios “méritos”, mas também dos erros da outra. E não há dúvida de que graves responsabilidades foram acumuladas pelo PT naqueles anos, primeira entre outras a culpa de ter falhado na integridade moral. O mensalão revelou não só um antigo mau hábito parlamentar de todos os partidos de governo, como também trouxe à tona o enriquecimento pessoal de alguns líderes da esquerda, fato imperdoável.
Dito isso em claras letras, além de todos os erros e limites da esquerda brasileira daqueles anos, na história mundial das últimas décadas raramente se viu um complô político tão complexo quanto insustentável como o armado contra Lula pela classe dirigente brasileira. O golpe contra Dilma Rousseff teve os votos de um Parlamento obediente, é um fato, mas pouco depois do impeachment ficou claro para o mundo inteiro que se tratava de um procedimento inventado e sem bases legais.
Enquanto a imprensa dominada por poucas famílias executava o trabalho sujo de manipular a opinião pública, é também fato que aqueles juízes parciais e com obsessão antilulista foram publicamente desmascarados e a prisão do ex-presidente, anteriormente imposta sem provas, foi sucessivamente anulada pela mesma magistratura Suprema. Acontecimentos estes que, se não tivessem provocado dramáticas consequências negativas para o País inteiro e profundo sofrimento para as pessoas envolvidas, poderiam ser considerados capítulos de uma telenovela cômica.
A DINÂMICA DE PODER QUE LEVOU O BRASIL À TRAGICÔMICA EXPERIÊNCIA DE BOLSONARO NÃO É CONTINGENTE
Em suma, a autochamada elite brasileira (que de elite tem só as montanhas de dinheiro, sem sofisticação política alguma), em pleno terceiro milênio, no Ocidente, revelou-se ainda a mesma retrógrada classe de inspiração escravocrata que em 1964 chamou os militares contra “o perigo comunista” e abriu espaço para uma ditadura de 21 anos.
Sem que esse enredo tivesse sido aprendido, em 2018 os mesmos donos do poder, fartos de ensinamentos, permitem a eleição de Bolsonaro contra o brando petista Fernando Haddad, para depois dar-se conta do desastre provocado, mas continuando na mesma trajetória de sempre. Quer dizer, os dignos bisnetos daqueles senhores que em 1888 se opuseram à abolição da escravatura continuam demonstrando absoluta inadequação para dirigir um país moderno e muito complexo.
Eles merecem mesmo que, depois de anos de turbulências e tenebrosas quanto inúteis transações, a Nêmesis atue contra eles a sua vingança. Mas, sobretudo, para a ressurreição do Brasil e o resgate de seus pobres, a volta de Lula à chefia da nação é mais urgente que nunca. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1189 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE DEZEMBRO DE 2021.
CRÉDITOS DA PÁGINA: REDES SOCIAIS – JOHANN MORITZ RUGENDAS
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