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Made in Brazil

O Brasil foi um caso de sucesso de industrialização no século XX. Esse processo não ocorreu por acaso nem por decisões da “mão invisível do Mercado”. O Estado teve um papel central, com frequência em confronto com boa parte da burguesia brasileira. A indústria de […]

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Com investimentos no complexo industrial da saúde e no setor de energias renováveis, o Brasil pode voltar a ocupar um papel de destaque no mundo
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O Brasil foi um caso de sucesso de industrialização no século XX. Esse processo não ocorreu por acaso nem por decisões da “mão invisível do Mercado”. O Estado teve um papel central, com frequência em confronto com boa parte da burguesia brasileira. A indústria de base, essencial para viabilizar na sequência a indústria de bens de consumo duráveis, foi resultado fundamentalmente de investimento estatal. A criação do ­BNDES, em 1952, dotou o País de uma agência de fomento com capacidade de financiamento de projetos de longa maturação, condição básica para qualquer nação ter sua própria indústria pesada e capacidade autônoma de construir sua infraestrutura. Por fim, a construção de Brasília mobilizou forças produtivas em larga escala e consolidou a indústria de construção civil pesada e uma enorme cadeia de fornecedores. Brasília funcionou como um catalisador de demanda essencial à diversificação industrial.

Tanto o governo de Getúlio Vargas quanto o de Juscelino Kubitschek enfrentaram sólida oposição de parcelas da burguesia brasileira e dos economistas liberais, que passo a passo se opuseram a todas essas iniciativas. O discurso da vocação agrícola brasileira estava presente, assim como a negativa da existência de petróleo que justificasse uma empresa e o monopólio estatal, as reticências da banca privada à criação do BNDES e a feroz oposição à construção de Brasília capitaneada pela UDN. Expressões de uma burguesia que jamais teve projeto de nação, e sim projeto de classe.

Mesmo após o golpe de 1964, o Estado continuou sendo o motor de arranque da industrialização, com o primeiro Programa Nacional de Desenvolvimento no governo Médici e o segundo no governo Geisel. As crises do petróleo em 1973 e 1979 introduziram um elemento novo, a restrição externa. A alta dos juros americanos no início da década de 1980 puniu países como o Brasil, os quais tinham sustentado boa parte do seu crescimento com o financiamento externo. Da crise da dívida em 1982 em diante, e por cerca de duas décadas, qualquer crescimento mais substantivo era abortado por problemas de balanço de pagamentos, que por sua vez eram enfrentados com desvalorização cambial e inflação decorrente, produzindo um forte desarranjo macroeconômico. A chamada década perdida levou os brasileiros aos governos Collor e FHC e à inflexão neoliberal.

JOSÉ LUÍS FEVEREIRO:Economista moçambicano, formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e radicado no Brasil. É integrante da Direção Nacional do PSOL desde 2007.

Toda a ideia de planejamento, de ação do Estado como indutor de industrialização, foi substituída pela crença de que o mercado proveria e naturalmente impulsionaria os setores industriais nos quais o Brasil tivesse vantagens comparativas. As políticas de controle da inflação baseadas na âncora cambial e a abertura comercial com a forte redução de tarifas de importação aceleraram o processo de perda de densidade industrial. Já neste século, com os governos do PT e o boom das commodities, resolveram-se as restrições externas, mas a valorização cambial criou dificuldades à competitividade industrial brasileira. Políticas de compras governamentais, a exigência de porcentuais de componentes nacionais nas compras da Petrobras e ações mais arrojadas do BNDES no financiamento à indústria recolocaram o debate do papel do Estado na agenda, mas se demonstraram claramente insuficientes. A participação da indústria no PIB, que nos anos 1980 chegou a estar acima dos 25%, hoje gira em torno de 11%. Parte da queda decorre do crescimento do setor de serviços, um fenômeno mundial. Mas parte disso também se deve à desindustrialização precoce.

A reversão desse quadro não é simples e experiências de outros países – ou de outros tempos – não podem ser replicadas. A integração de cadeias produtivas em nível global torna muito menos eficazes medidas tarifárias de proteção. Por outro lado, medidas de dumping cambial com desvalorização da moeda, replicando o modelo chinês das décadas de 1980 e 1990, são inexequíveis no Brasil e ineficazes nesta terceira década do século.

A China tinha um enorme contingente de trabalhadores vindos do campo, de atividades de baixíssima produtividade, uma economia muito planificada e, mesmo com salários muito baixos em dólar, esse trabalho industrial era mais bem remunerado que o trabalho no campo. Por outro lado, o controle rígido do processo de urbanização manteve o custo de reprodução dessa força de trabalho em patamares baixos. Uma economia que planejou sua industrialização a partir das Zonas de Processamento de Exportações, transformando-se na grande plataforma industrial do mundo, e se preparando para os passos seguintes orientados para a formação de um mercado interno de consumo. A experiência chinesa é claramente a mais exitosa da história, ao retirar centenas de milhões de trabalhadores da pobreza em 40 anos.

É PRECISO REVER TODO O ARCABOUÇO MACROECONÔMICO EM VIGOR, REVOGAR AS AMARRAS FISCAIS QUE IMPEDEM POLÍTICAS ATIVAS DO ESTADO

Essa experiência não é, porém, passível de ser repetida no Brasil. As indústrias intensivas em força de trabalho já se deslocam da China para outros países asiáticos, como o Vietnã e ­Bangladesh. E o Brasil não tem uma conformação demográfica e social capaz de competir com esses países em termos de baixos custos da força de trabalho, o que é positivo. Qualquer política de redução do salário em dólar no Brasil teria como decorrência perda de dimensão do nosso mercado interno, mais do que eventuais ganhos de competitividade nas exportações. Qualquer processo de reindustrialização deve ser centrado em indústrias com maior densidade tecnológica e, nesse caso, o custo da força de trabalho não é um elemento relevante.

Pensar a reindustrialização brasileira passa por rever todo o arcabouço macroeconômico em vigor, revogar as amarras fiscais que inviabilizam políticas mais ativas do Estado para buscar a plena utilização dos fatores de produção. Revogar o teto de gastos, rever a Lei de Responsabilidade Fiscal e os mecanismos que impedem o Tesouro de financiar a União são pressupostos. É preciso consolidar a ideia de que o déficit fiscal da União é o verdadeiro estado de equilíbrio das contas públicas, uma vez que desse déficit depende o superávit privado, e usar as vantagens comparativas para alavancar um projeto industrial com densidade tecnológica e valor agregado.

Três iniciativas me parecem centrais. Uma, pela sua capacidade de gerar empregos de forma rápida, seria a criação de um amplo programa de infraestrutura de mobilidade urbana. Trens, metrôs, VLTs, anéis rodoviários, portos, aeroportos, obras para as quais o Brasil tem empresas capacitadas, mão de obra disponível e domínio tecnológico, e que cumpriria o papel de recuperar a construção civil pesada brasileira, setor que tem historicamente capacidade de competir internacionalmente. Seria também uma forma de equacionar as dívidas dos estados com a União, de forma que a resolução desse problema não ficasse restrito a um perdão de dívidas com as desigualdades federativas que isso implicaria.

As indústrias intensivas em força de trabalho migram da China para países como Vietnã ou Bangladesh

A segunda iniciativa é desenvolver a indústria farmacológica e do complexo de saúde em geral, utilizando-se de três fatores já existentes. O Brasil tem o maior sistema de saúde pública do mundo, o SUS, como demandante, tem a maior biodiversidade do planeta e tem centros de excelência nas universidades públicas capazes de desenvolver a pesquisa básica. O papel indutor do Estado é o alicerce capaz de transformar essas potencialidades em um projeto nacional.

Por fim, o Brasil pode desenvolver o setor da energia sustentável. Energia eólica, solar e de marés. Dessas, só a primeira tem peso razoável na matriz energética nacional. O potencial produtivo nessas áreas justifica e viabiliza o desenvolvimento de tecnologia própria. O País tem uma das maiores áreas de insolação do mundo, 8,5 mil quilômetros de costa e regiões onde o regime de ventos é bastante propício à produção de energia eólica. É possível não apenas mudar radicalmente a matriz energética brasileira, mas também desenvolver e exportar tecnologia própria nessas áreas.

Dois projetos e duas concepções de papel do Estado confrontam-se no Brasil e isto precisa estar na agenda do debate de 2022. Um Estado meramente regulatório da atividade privada, modelo equivocado que agrava o processo de desindustrialização e de dependência tecnológica, colocando o Brasil em posição subalterna na divisão internacional do trabalho, ou um Estado que assuma o seu papel de agente econômico ativo, por meio de investimentos públicos, usando ao limite sua capacidade de indução do investimento privado. Ou seja, um Estado que tenha como meta a estabilidade macroeconômica no mundo real, determinada pela otimização da utilização dos fatores de produção e não por fantasias contábeis. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1189 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: NELSON ALMEIDA/AFP, MME E REDES SOCIAIS – ISTOCKPHOTO E M.CROZET/ILO-ASIA

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