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Baile no quintal

Sergei Ryabkov disse que a Rússia e os Estados Unidos podem estar a caminho de uma repetição da crise dos mísseis cubanos de 1962

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Sinais. O ucraniano Zelensky se veste para a guerra. Putin encarna a Mãe Rússia furiosa
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Um vagão de trem-plataforma que corria pelo sudoeste da Rússia transportava um mau presságio para as negociações que tentam evitar uma guerra maior com a Ucrânia. A bordo estava um Buk-M1, o tipo do sistema de mísseis terra-ar de médio alcance, que ficou famoso em 2014 depois de um deles, disparado de território controlado por mercenários dos russos no leste da Ucrânia, derrubar um jato de passageiros da Malásia e matar os 298 passageiros e tripulantes a bordo. Se a Rússia entrar em guerra com a Ucrânia, ainda precisará dar vários passos: estabelecer linhas de abastecimento de combustível, abrir hospitais de campanha e mobilizar sistemas de defesa aérea como o Buk para proteger seu armamento pesado e suas tropas perto da frente.

Enquanto Joe Biden e Vladimir Putin sentavam para conversas que visam pôr fim à crise, a Rússia aproxima-se aos poucos de estar pronta para lançar uma invasão por terra em grande escala à sua vizinha. “Esses dados nos permitem concluir que, apesar das negociações entre Biden e Putin, as tropas russas continuam a se concentrar nas áreas ao redor do território controlado pelas autoridades ucranianas”, escreveu a Equipe de Inteligência de Conflito (CIT, na sigla em inglês), grupo de pesquisas online que usou as redes sociais, horários de trens e outros dados para revelar detalhes da mobilização militar russa na fronteira.

Putin ainda poderá decidir não lançar uma invasão, enquanto deixa as tropas perto da frente como alavancagem nas negociações. Mas analistas russos e ocidentais preveem que essa mobilização militar, a segunda neste ano, é um aviso de futuras crises ligadas à Ucrânia, enquanto o presidente russo tenta reverter sua trajetória em direção ao oeste. “Mesmo que Putin consiga algo do Ocidente, negociações sérias ou discussões sobre garantias serão suficientes?”, pergunta Tatiana Stanovaya, fundadora da firma de análises políticas R.Politik. “Presenciamos a aurora de um novo aventureirismo geopolítico da Rússia.”

Apesar das negociações Putin-Biden, a crise se aprofunda. Na quinta-feira 9, o serviço federal de segurança da Rússia (FSB) informou ter interceptado um navio ucraniano no Mar de Azov, perto da Crimeia, que não quis obedecer às suas ordens. Um dia depois, a Rússia fechou quase 70% do Mar de Azov, um corpo de água também usado pela Ucrânia, para treinamento de tiro. Depois há a escalada retórica.

O vice-ministro das Relações Exteriores, Sergei Ryabkov, disse que a Rússia e os Estados Unidos podem estar a caminho de uma repetição da crise dos mísseis cubanos de 1962. E Putin disse em uma reunião recente que a situação no leste da Ucrânia “parece um genocídio”, o que levanta temores de que ele possa buscar um pretexto para enviar suas tropas ao país.

Putin tenta arrancar de Joe Biden o compromisso de que o Ocidente se mantenha longe

Com a ameaça militar na mesa, o Ministério das Relações Exteriores russo divulgou na sexta 10 sua lista de exigências para encerrar a crise. A principal delas é que a Otan “recuse oficialmente a decisão da cúpula de Bucareste em 2008 de que ‘a Ucrânia e a Geórgia se tornem integrantes’”. Putin passou as últimas duas­ décadas na tentativa de combater a expansão da Otan, mas o possível acesso da Ucrânia à aliança militar ocidental sempre tocou emoções mais profundas, e em parte o motivou a ordenar a anexação da Crimeia e provocar uma guerra no leste da Ucrânia que matou mais de 14 mil pessoas. “Eu disse a eles: por favor, não toquem na Ucrânia, ou haverá problema”, disse ­Fyodor Lukyanov, influente analista russo de política externa, citando suas discussões com colegas ocidentais sobre a ampliação da Otan nos anos 2000. “Existe uma linha vermelha real. Certo ou errado… esse tipo de engajamento com a Ucrânia sobre assuntos de segurança e militares é visto aqui como absolutamente inaceitável.”

Lukyanov disse que Putin via como seu “dever de presidente” não deixar para o próximo líder russo o “problema ucraniano”, em referência à sua trajetória em direção ao Ocidente.

Os Estados Unidos tentaram convencer a Rússia de que a Ucrânia não entraria para a aliança tão cedo, mas Moscou exigiu uma declaração mais formal. Isso foi um tiro no pé, disse o diretor da Otan Jens Stoltenberg, horas depois de a exigência ser divulgada. “A relação da Otan com a Ucrânia será decidida pelos 30 aliados da Otan e a Ucrânia, ninguém mais”, disse numa entrevista coletiva com o novo chanceler alemão, Olaf Scholz.

Na Ucrânia, o apoio à entrada na Otan cresceu de modo considerável nos últimos anos, conforme o país buscou proteção de uma Rússia cada vez mais agressiva. E para os países no flanco leste da Otan permitirem que a Rússia dite a política da aliança na Ucrânia é considerado o primeiro passo numa estrada escorregadia para se reconhecer a esfera de influência da Rússia. “A história mostra que promessas de neutralidade da Ucrânia ou qualquer outro país da região não diminuem o apetite de Putin. Ao contrário, elas o alimentam”, escreveu o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, em artigo publicado pela revista Foreign Affairs. “A melhor maneira de responder a esses ultimatos é ignorá-los totalmente.”

Há dúvidas sobre se a Rússia realmente quer fechar algum acordo. Analistas comentaram que, apesar de Moscou intensificar suas forças há meses, diplomatas russos não prepararam documentos oficiais ou mesmo formularam as exigências do país. E a ideia de controlar quase 100 mil soldados a uma distância de ataque da fronteira ucraniana (os EUA disseram que a Rússia poderá aumentar esse número para 175 mil até o fim de janeiro) só para efetuar conversações com Biden pareceu um exagero para os observadores ocidentais.

Isso nos leva de volta ao Buk, que, como notou a CIT, tinha seus números repintados de modo grosseiro para dificultar a identificação. A Rússia empregou táticas semelhantes durante sua invasão clandestina da Ucrânia em 2014. O relógio corre e Putin poderá recuar, mas seria embaraçoso fazê-lo sem uma vitória sólida na mão. E parece impossível que as exigências da Rússia sejam atendidas pelo Ocidente. “Putin acha que, se Biden quiser, pode mover montanhas, convencer os aliados e convencer Kiev (a fazer concessões)”, disse Stanovaya. “Esse problema poderá levar Putin a exigir o impossível e elevar tanto as apostas que tudo termine em guerra.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1188 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: MIKHAIL METZEL/SPUTNIK/AFP E EYEPRESS NEWS/AFP

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