Economia
V de vexame: Enquanto Guedes delira, o Brasil real mergulha na recessão
Como superar o dilema entre a afirmação de que, se o governo gastar, atrapalha, e a constatação de que, se não gastar, a economia cai?


A exceção do ministro Paulo Guedes, acorrentado aos próprios delírios de uma improvável recuperação em V da atividade, economistas sérios de todos os quadrantes e orientações ideológicas projetavam uma queda do PIB no terceiro trimestre. O resultado de menos 0,1% divulgado pelo IBGE não surpreende, mas continua chocante, ao confirmar que o prosseguimento da atual política econômica equivale a cancelar a possibilidade de desenvolvimento. O resultado negativo foi puxado por um tombo de 8% na agropecuária e ocorreu após variação negativa de 0,4% no segundo trimestre. Dois trimestres seguidos de baixa do PIB caracterizam recessão.
“Para mim, surpresa foi aquele resultado positivo do primeiro trimestre, porque eu estava esperando que este ano seria de estagnação”, destaca Julia Braga, professora de Economia da Universidade Federal Fluminense, em referência à elevação do PIB em 1,2% nos primeiros três meses do ano, na comparação com o mesmo período de 2020. “Eu tinha esse diagnóstico porque no ano passado houve desvalorização cambial de 30% e os índices no atacado refletiam uma pressão de custo muito forte, que fatalmente iria passar para o varejo. Teve início um processo inflacionário que, mesmo se não houvesse reação da política monetária, por si só tem um viés recessivo, pois torna o custo de vida mais caro para as famílias e elas tendem a compensar e a retrair o consumo.”
Além das causas apontadas, houve uma consolidação fiscal, isto é, “reduziram-se em muito os estímulos do ano anterior”. Nesse aspecto, o Brasil foi na contramão do mundo, pois a maior parte dos governos manteve os estímulos fiscais por mais tempo por causa do diagnóstico de que a pandemia ainda não estava controlada, analisa Braga. O País, diz, atravessou esses três trimestres ainda com números muito altos da pandemia. “Só agora os casos baixaram, portanto, só agora é que seria o caso de se pensar em retirar o estímulo fiscal ou diminuí-lo pela metade.”
O que vem pela frente em 2022 não autoriza qualquer otimismo
O crescimento previsto por boa parte dos economistas, entre 4% e 5%, virá, em muito, do carregamento estatístico, isto é, do impulso deixado do último trimestre do ano passado, quando o PIB aumentou 3,1%. “A verdade é que o Brasil está estagnado desde 2015, devido às medidas contínuas de restrição fiscal, além de fatores setoriais, por exemplo, no ramo da construção, que nesse período todo sofreu muito com a Operação Lava Jato”, sublinha Braga, que atribui a paralisia ao aumento da inflação e à “consolidação fiscal precipitada”.
Além da estagnação do consumo das famílias e das perdas do setor de construção civil, que ainda contribuiu “na margem” para o crescimento do PIB neste ano, destaca-se o “crescimento forte de investimento, formação bruta de capital fixo, tanto pela recuperação da construção civil quanto de máquinas e equipamentos, em parte de tratores agrícolas”. Essa evolução de máquinas agrícolas não permite concluir, segundo a economista, que, apesar do problema no trimestre, é por causa da agricultura que o PIB cresce um pouco. “O setor deu uma contribuição enorme neste ano e acho que, em 2022, a parte de máquinas e equipamentos e construção tende a ser um fator a puxar para baixo o PIB”, devido à defasagem entre esse indicador de investimento e o que acontece com a demanda.
Não só por isso 2022 é visto com pessimismo por vários analistas. “Agora a gente tem praticamente tudo jogando para baixo. Há contração fiscal e contração monetária, com aumento muito forte, e súbito, da taxa de juros, e ainda tem o processo complicado da taxa de câmbio desvalorizada resistente. O BC passou muito tempo sem fazer intervenção no mercado à vista, num período crítico e num processo inflacionário, mas o câmbio é um elemento importante”, afirma Braga.
Pedala. Muito trabalho, pouca renda
Segundo José Francisco Lima Gonçalves, economista-chefe do Banco Fator, o primeiro aspecto a enfatizar é que, antes da pandemia, a economia não vinha bem. “O primeiro trimestre do ano passado teve queda do PIB e isso não tinha nada a ver com a pandemia, que encontrou uma economia que já estava, no mínimo, andando de lado. Isso, depois de um ano de uma política econômica na linha do que foi montado no governo Temer. Na verdade, foram três anos da mesma coisa, e o resultado, no fim de 2019, não era diferente de uma economia andando de lado.”
A pandemia, acrescenta, incide a partir desse ponto. Quando se começa a sair da pandemia, há duas dificuldades. Uma delas é que existe uma parte da economia que não consegue andar direito por causa dos gargalos. “Não é só problema de preço, é atraso mesmo, falta de insumos, de peças, de um lado. De outro lado, tudo o que estava constituído antes da pandemia saiu pior, não melhor. O mercado de trabalho nunca esteve perto de se recuperar em relação aos níveis pré-recessão de 2015-2016 e na pandemia, ele piorou.” Hoje, diz Gonçalves, há um mercado de trabalho com ocupação mais baixa, de pior qualidade, com menor rendimento e em meio a uma inflação em processo de aceleração. “Tome-se o efeito da pandemia sobre serviços, que é a maior parte do PIB, junte-se com serviços prestados às famílias, em torno de 35%, segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE, e temos um nível de crescimento extremamente frágil, mesmo comparando com o nível ridículo que já era antes da pandemia. É pior. Caminhávamos, portanto, em uma direção ruim, e está pior. Isso é visível principalmente no consumo.”
A degradação é menos visível no investimento, no terceiro trimestre. A análise desse fator é complicada, pondera Gonçalves, até por conta da discussão em torno da questão contábil das plataformas de petróleo, se são importação ou investimento. “Mas, mesmo que se considere o número como ele é divulgado, que não está errado, pois é uma questão de contabilidade, o investimento está desacelerando, está piorando.” O aumento da taxa de investimento em relação ao PIB que aconteceu neste trimestre, diz, é investimento em reais, sobre PIB em reais. Se o deflator do investimento é maior que o deflator do PIB, há uma alta taxa de investimento que se deve à inflação e não a aumento de investimento. “É preciso tomar cuidado. Aumentou a taxa de investimento, é verdade, porque ela é uma relação entre duas variáveis nominais que têm indexadores diferentes. A variação nominal do investimento foi de quase 20% e a do PIB ficou bem abaixo. Isso ajuda a entender que o investimento não está lá essas coisas”, dispara o economista.
O Brasil continua a andar de lado desde a recessão de 2015 e 2016
O destaque é o baixo desempenho do consumo das famílias. “O governo continua ajudando alguma coisa na demanda, mas é menos de 1%, é 0,6% a 0,8%, devido ao teto de gastos etc. Olhando desse lado, o quadro é pior do que antes, agravado agora pela perspectiva, que está em funcionamento, da alta dos juros. É meio óbvio que começou o efeito da alta dos juros sobre a atividade nesse terceiro trimestre.” Gonçalves considera esse ponto decisivo, pois daqui para a frente, terá efeito maior. Se isso afetou demanda, consumo e investimento, e também a oferta, na indústria principalmente, a perspectiva não pode ser melhor do que esse resultado atual. “Acho que essa é a ideia. É óbvio, a questão do teto de gastos coloca uma restrição a mais na demanda”, sublinha.
O economista-chefe do Fator cita o fato de que “o governo gastar mais não significa jogar fora, é gastar comprando coisas do setor privado. O governo não compra dele mesmo, ele compra do setor privado. Então, quando há gasto do governo, é bom para o setor privado. Há aí um medo de mais longo prazo, do mercado, em relação à dívida, mas, se você não gastar, o setor privado estará encolhendo junto”.
Como superar o dilema entre a afirmação de que, se o governo gastar, atrapalha, e a constatação de que, se não gastar, a economia cai? Só tem um jeito, segundo Gonçalves, que é existir alguém que consiga convencer que há um nível razoável de gasto que ajuda a economia sem arrebentar as contas públicas. “Essa pessoa tem de ser o presidente. É um problema político. Ninguém vai impor nada, ninguém consegue impor nada nesse grau de deterioração da economia e da própria política. Só sai disso se tiver alguém que converse. É isso.”
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1187 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE DEZEMBRO DE 2021.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.