Economia
Bomba de sucção
Explosão do preço dos combustíveis e do gás de cozinha provoca enorme transferência de renda dos brasileiros para uma minoria de acionistas


Pressionado pela necessidade, o brasileiro que dirige veículo motorizado e mora em localidades que fazem divisa com a Argentina ou o Paraguai adquiriu uma nova rotina: cruzar a fronteira para encher o tanque de combustível por preços entre 3,10 reais e 5,29 reais no fim de outubro, bem abaixo dos 6 a 7 reais o litro no País no mesmo período. Os peregrinos da gasolina somam-se a milhões forçados a mudar hábitos diante da escalada dos preços dos combustíveis no governo Bolsonaro, com aumentos da gasolina a cada nove dias, do diesel a cada dez e do gás de cozinha a cada 50 dias, segundo acompanhamento do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, o Ineep. Em 12 meses, a gasolina subiu 53%, o diesel 51% e o gás 40%.
A massa de prejudicados inclui 14 milhões de famílias obrigadas a usar lenha ou carvão para cozinhar, segundo dados do IBGE divulgados no fim do ano passado, por não terem dinheiro para o gás. Acrescentem-se aqueles forçados a caminhar longas distâncias por não darem conta de pagar as passagens de ônibus, que também sobem com o diesel. Quando se considera que a gasolina, a energia elétrica e o botijão compõem, segundo os jornais, mais de um terço da inflação de dois dígitos acumulada nos últimos 12 meses, não é exagero concluir que a crise dos combustíveis é hoje um dos maiores e mais graves problemas para o funcionamento da economia e do dia a dia da população, em especial sua parcela mais pobre.
Fonte: Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – Ineep
A resposta do governo ao problema é insistir em paliativos e promessas que não consegue cumprir, como o auxílio-caminhoneiro e o vale-gás, que até a quarta-feira 24 continuavam fora das destinações previstas na PEC dos Precatórios, e persistir na liquidação do que resta da estrutura da Petrobras, que possibilitou, durante décadas, a suavização do repasse dos preços internacionais do petróleo e da variação da taxa de câmbio. Movida a incompetência e entreguismo, Brasília insiste também na dolarização dos preços dos combustíveis derivados de petróleo produzidos no País, a serem pagos por consumidores que recebem em reais. A dolarização é consequência da política de preços da Petrobras, o famigerado PPI, ou Preço de Paridade à Importação, implantado por Pedro Parente, indicado por FHC ao ex-presidente Michael Temer e que ocupou a presidência da empresa entre 2016 e 2018.
O contexto mundial complica ainda mais a situação. O valor real da gasolina e do diesel é o maior dos últimos 20 anos e as perspectivas são nebulosas. Apesar das incertezas da economia mundial diante de uma possível nova onda da pandemia, o petróleo oscila acima da mínima há seis semanas no mercado internacional, destacam as agências de notícias. Os EUA articulam uma liberação coordenada das reservas estratégicas das maiores economias do mundo para reduzir o déficit de oferta, mas todas as partes envolvidas sabem que não basta. Enquanto isso, o Brasil, autossuficiente em petróleo, dono de uma das maiores reservas do mundo e até pouco tempo atrás de amplo parque de refino e estrutura de distribuição e transporte unificados na Petrobras, aumenta cada vez mais a sua dependência da importação de derivados, em consequência da política atual da empresa, de vender suas controladas, focar na exploração, produção e exportação de óleo bruto, aumentar a importação de derivados a qualquer preço e transferir todos os custos em dólar ao consumidor. Em outubro, o Brasil foi o maior importador de gás natural liquefeito dos Estados Unidos, segundo publicações especializadas.
O ARGUMENTO DE QUE A ATRAÇÃO DE INVESTIMENTOS PRIVADOS GERA UMA PRESSÃO BAIXISTA SOBRE OS PREÇOS É IDEIA FALSA E PERIGOSA
A necessidade cada vez mais urgente de uma solução resultou na proliferação de propostas para deter a avalanche de reajustes dos combustíveis. Isenção de ICMS, taxação da exportação do óleo bruto, banda móvel de preços, criação de um fundo de estabilização com receitas do próprio petróleo obtidas em momentos favoráveis, ou a partir dos lucros da estatal, ou ainda com a receita da venda de ações de empresas públicas são algumas das alternativas em discussão. As proposições para reduzir o ICMS incidente nos combustíveis, criar um fundo de estabilização dos preços dos derivados e taxar a exportação de petróleo destacam-se.
A carga de ICMS, comparada a outros setores da economia, é mais elevada e a decisão do STF de limitar as alíquotas aplicadas pelos estados deverá resultar em uma queda dos preços no curto prazo, mas esse imposto é uma das mais importantes fontes de financiamento dos entes federativos e a sua redução é combatida pelos governadores na mesma intensidade com que Bolsonaro a defende. A criação de um fundo de estabilização formado pela receita da venda de ações de estatais é defendida pelo presidente do Fórum Nacional de Governadores e governador do Piauí, Wellington Dias. A taxação de exportações de petróleo e a constituição de um fundo de estabilização de derivados a partir desses recursos estão previstas em ao menos dois projetos, um do deputado Zé Neto, outro do senador Rogério Carvalho, ambos do PT, em discussão no Congresso. “Como os preços de combustíveis são centrais para o sistema de preços de uma economia dependente de transporte por veículos automotores, cabe a pergunta fundamental: será que é razoável deixá-los oscilar de acordo com decisões financeiras tomadas fora do País, como o preço do petróleo e a taxa de câmbio?”, pergunta o economista José Augusto Gaspar Ruas, professor-coordenador do MBA em Gestão e Economia da Energia da Facamp.
A esta situação estão submetidas 14 milhões de famílias
Há uma falsa e perigosa ideia, diz, de que a atração de investimentos privados introduziria uma pressão baixista de preços. Essa ideia, que também possui versões específicas para o setor de gás natural e para o elétrico, não tem qualquer base na realidade de funcionamento desses segmentos. É preciso cuidar para que os preços não oscilem dramaticamente, com impacto sobre a inflação de outros produtos e não atinjam patamares muito elevados, tornando impeditivo seu consumo para os mais pobres, sublinha. O repasse automático dos preços externos tem potencial de provocar consequências políticas graves. Segundo o economista Gabriel Galípolo, “as agendas que propõem repassar imediatamente os preços externos é incompatível não com um governo de esquerda ou de direita, mas aflige governos dos mais diversos espectros”. É interessante observar, diz Galípolo, que, ao contrário do que se imaginava antes, quando se dizia que eventuais intervenções para suavizar aumentos seriam resultado de inclinação ideológica ou inclinação política de governos que seriam mais pró-mercado ou menos pró-mercado, se percebe cada vez mais que essa política de aumentos automáticos em função do preço do petróleo e do dólar é quase impossível de suportar em um regime democrático. “É um problema que acossa qualquer tipo de governo, porque fica insustentável o desgaste que se tem ao passar imediatamente as oscilações do preço do petróleo e do combustível para a população em geral.”
A dolarização fortaleceu, entretanto, ramos da economia com grande influência política e midiática que deverão dificultar a adoção de um sistema de suavização dos repasses de preços ao consumidor. Segundo o deputado Bohn Gass, do PT, há mais de 300 importadoras de derivados de petróleo registradas no País, a maior parte cadastrada a partir de 2016 e ligada a petrolíferas estrangeiras. Para as empresas com interesse na manutenção do PPI, a existência da Petrobras, mesmo desfalcada de algumas refinarias, gasodutos e da distribuidora, é uma ameaça, pois poderia, no futuro, “operar com outras lógicas de precificação, o que seria uma barreira competitiva dramática e pode limitar ganhos privados”, sublinha Ruas.
No Congresso, Luna e Silva reconheceu o prejuízo na venda das refinarias
O impasse ficou claro, em alguma medida, na audiência pública para discutir os aumentos dos preços dos combustíveis, realizada pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado na terça-feira 23. Convidados, os ministros da Economia, Paulo Guedes, e de Minas e Energia, Bento Albuquerque, não compareceram. O presidente da Petrobras, general Silva e Luna, ao responder se considera importantes tanto a autossuficiência em petróleo quanto a garantia de distribuição de combustíveis, disse que “a busca da autossuficiência passa a ser oportunidade para quem quiser investir no nosso País”.
O senador Jean Paul Prates, autor da pergunta, replicou: “Não compreendi nada da sua resposta. Não entendi onde é que está a vantagem da autossuficiência. O senhor diz que autossuficiência é uma oportunidade e que a Petrobras está importando cada vez mais, não há absolutamente nenhuma conexão. O que eu queria ouvir é que a empresa iria aproveitar a autossuficiência para baixar o custo de derivados para os brasileiros, porque produzimos a maior parte do nosso petróleo e refinamos a maior parte dos derivados em território nacional, com boa parte dos preços dessa cadeia produtiva pagos em reais”. O general manteve-se impassível e o senador prosseguiu: “Se a autossuficiência é jogada fora por um PPI, onde a gente pratica o preço internacional de todos os combustíveis dentro do território nacional, onde é que está a vantagem, onde é que está o amortecimento das oscilações internacionais?” Prates destacou a importância da autossuficiência por proporcionar “a possibilidade de contar com um preço diferenciado eventualmente, não totalmente desgarrado do mercado internacional, mas ao menos manejar um pouco a componente do preço internacional do petróleo aqui dentro”.
A POLÍTICA DE REAJUSTES AUTOMÁTICOS É QUASE IMPOSSÍVEL DE SUPORTAR EM UM REGIME DEMOCRÁTICO
Luna e Silva admitiu que as três refinarias vendidas até agora pela Petrobras “tiveram os preços abaixo do que foi proposto”, uma confirmação dos temores daqueles que acusam a Petrobras de se desfazer de ativos apressadamente para gerar caixa e distribuir dividendos aos acionistas. O presidente da Petrobras garantiu ainda que as refinarias estão com ocupação de 100%, mas o presidente da Federação Única dos Petroleiros, Deyvid Bacelar, contesta. “A utilização das refinarias hoje atinge 75%, em média. A medida provocou redução na produção interna e elevou importações de derivados, a preços dolarizados, que só beneficiam tradings e importadores”, disparou o dirigente sindical. “Não se empenhar para compatibilizar preço externo e preço interno, deixar a dona de casa cozinhar com lenha e carvão porque não pode pagar o gás, isso é preguiça e incompetência deste governo”, criticou Prates.
O general disse cumprir a lei. “Se a Petrobras cumpre a lei, mas a lei está prejudicando os brasileiros, é obrigação sua pedir para nós mudarmos a lei, para não prejudicar os brasileiros”, rebateu o senador Omar Aziz, do PSD.
Para os acionistas estrangeiros da Petrobras, só alegria
Prates é relator do projeto do senador Rogério Carvalho que estabelece diretrizes para a política de preços de venda de gasolina, diesel e gás liquefeito de petróleo, determina que os valores internos praticados por produtores e importadores tenham como referência as cotações médias do mercado internacional, os custos internos de produção e os custos de importação, estabelece alíquotas progressivas do imposto de exportação incidente sobre o petróleo bruto e cria o fundo de estabilização dos preços de derivados de petróleo. Carvalho estima que, no caso de a iniciativa ser aprovada, o preço do litro da gasolina cairá de 7 a 9 reais para, em média, 5 reais e o do botijão de gás, de 80 a 100 reais para 65. Segundo o parlamentar, é hora de trazer esses itens para o mundo real e é inadmissível que os brasileiros continuem a pagar preços abusivos, “enquanto apenas acionistas minoritários da Petrobras lucram”.
O ponto mais acertado do projeto de Carvalho, segundo Ruas, é que o ônus dessa política recairia sobre exportadores e garantiria rentabilidade aos segmentos de refino e distribuição, que permaneceriam com preços livres ou subsidiados em eventuais ajustes. O setor de petróleo, diz, tem no Brasil uma perspectiva positiva no médio prazo, de ampliar significativamente as vendas externas em função do tamanho das reservas e do crescimento da produção do pré-sal, com possibilidade de ganhos extraordinários. O projeto estabelece uma tarifa progressiva, que sobe na medida da elevação do preço acima de determinado valor, o que evita onerar excessivamente essa atividade. Outro destaque é que o ônus não recai nem no consumidor nem no Estado, ou seja, superam-se todas as questões mais dramáticas do ajuste fiscal, de regra de ouro, portanto não tem impacto no orçamento e coloca o mecanismo de banda como referência, ou seja, deixa o preço operar de maneira quase livre, minimizando oscilações. Há um aspecto, entretanto, que merece discussão, segundo o professor da Facamp. Trata-se do estabelecimento de 40 dólares o barril como o ponto de início dessa tributação. “É um preço relativamente barato hoje para o setor. Além disso, não se define nenhuma relação desse preço com o valor em reais. Há proteção da oscilação do preço internacional, mas não da variação cambial.”
O mercado adora Parente. Entendem-se os motivos. Prates defende mudanças na Petrobras
Taxar a exploração e a produção não é inventar a roda nem justifica o alarmismo das empresas que eventualmente serão chamadas a contribuir, caso algum projeto com esse dispositivo venha a ser aprovado, sublinham economistas. Os lucros excepcionais em exploração e produção de petróleo foram importantes para financiar a construção do gasoduto Bolívia-Brasil, que operou com prejuízo durante anos, mas se consolidou como uma fonte de oferta imprescindível para indústria, residências, comércio, produção de energia elétrica e Gás Nacional Veicular nos últimos 20 anos. Além disso, financiou investimentos em pesquisa e desenvolvimento que capacitaram, décadas depois, a exploração em águas ultraprofundas e garantiram a possibilidade de aquisição de serviços, equipamentos e tecnologia nacional, gerando empregos e desenvolvimento no País.
“Para alterar definitivamente essa situação de carestia dos combustíveis é necessário que o País aumente a produção de derivados, diminua as importações e altere a política de preços da Petrobras. Infelizmente, o atual governo e a administração da empresa não demonstram disposição para enfrentar o problema. Se alteram a PPI, correm o risco de perder apoio do mercado financeiro, e se não alteram, correm o risco de perder o apoio de parte dos consumidores e eleitores”, destaca William Nozaki, coordenador técnico do Ineep. Diante do impasse, diz, o governo adia uma solução e terceiriza a responsabilidade sob a alegação de que a culpa é do mercado internacional ou dos governos estaduais. “Nesse cenário, a pressão do Legislativo para que uma providência seja tomada é fundamental. O projeto de lei que cria um fundo de estabilização, com bandas de flutuações nos preços dos combustíveis e um imposto de exportação de óleo cru, é muito importante. O Brasil precisa debater alternativas concretas para essa política de preços, sem negacionismo.”
CRÉDITOS DA PÁGINA: WAGNER MEIER/GETTY IMAGES/AFP E DAPSA/ARGENTINA – ALESSANDRO DANTAS/PT NO SENADO, SAULO CRUZ/MME E ISTOCKPHOTO – GREG BEADLE/WEF, MARCOS OLIVEIRA/AG. SENADO E COURTNEY CROW/NYSE
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1185 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE NOVEMBRO DE 2021.
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