

Opinião
Livre pensar é só pensar
‘Pensar na Santa Ceia prateada, em alto relevo, que havia na copa da casa da Rua Rio Verde’


Pensar em Millôr Fernandes, que vivia pensando. Caminhando e pensando, nadando e pensando, jogando frescobol e pensando. Dormindo, sonhando. Construindo frases, mudando palavras de lugar, somando e diminuindo números, embaralhando fatos e fotos.
Pensar na Santa Ceia prateada, em alto relevo, que havia na copa da casa da Rua Rio Verde. Cristo olhando todos os dias para aquela mesa farta, arroz, feijão, bife acebolado, taioba, angu. Goiabada de sobremesa.
Pensar na caixa de fotografias em que uma, já quase apagada, mostra um menino de nove anos com uma boina de veludo na cabeça e um pastor alemão ao lado, em posição de Rin-Tin-Tin.
Pensar no Rio das Velhas que atravessava o caminho rumo a Sabará, caudaloso, piabas pulando, se achando, como se fosse uma pororoca. Pedras lavadas, musgos vivos, capim meloso, minhocas.
Pensar na contracapa do disco Aprender a Nadar, a caricatura de Jards Anet da Vida, ou melhor, da Selva, ou melhor, da Silva. Manchas de sangue, só mesmo vendo como é que dói.
Lembrar das primeiras linhas de Cien Años de Soledad: Muchos años despues, frente al pelotón de fusilamiento, el coronel Aureliano Buendía habia de recordar aquella tarde remota em que su padre lo llevó a conocer el hielo.
Pensar na máquina Remington portátil que tantas palavras escreveu, sem gastar o chumbo, deixando em papéis outrora imaculados, palavras umas após as outras, aqui e ali, formando frases como na vida quem perde o telhado, em troca ganha as estrelas.
Pensar no cartaz do filme Laranja Mecânica, cajardo, chapéu, olhos pintados, olhar de lince, violência à flor da pele.
Nas galinhas ciscando no quintal, nos caixotes com palha, quatro ovos ao cair de cada tarde.
Nos boletins cor de rosa do Colégio Marista, notas vermelhas em matemática, dez em comportamento e canto orfeônico.
Nos pés nanicos de caju de uma Brasília selvagem, poeira vermelha e tratores amarelos pra lá e pra cá.
No chocolate quente com biscoitinhos amanteigados na sacristia, depois da primeira comunhão, alma lavada.
Nos Urubus no telhado do Matadouro do Perrela, pulando, beliscando uns aos outros, cheiro de carniça.
Na placa esmaltada no Bar e Lanches, já meio enferrujada, anunciando que fiado só amanhã.
Nos barquinhos de papel na enxurrada, as pipas coloridas no céu, as bolinhas de gude no saquinho de pano, a perna de pau, a guerra de mamonas, as fincas fincadas.
Pensar nas tardes de café creme no Deux Magots, nos impressionistas d’Orsay, na Guernica no Prado, nos campos de trigo de Vincent, em Amsterdã.
No grão de feijão inchando no algodão, brotando, crescendo, em busca da luminosidade que vinha da janela, procurando a vida.
Livre pensar é só pensar.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.