Política
Eleições, um assunto de família
Ou uma mensagem de WhatsApp para um sobrinho querido


Você me pergunta quais argumentos usar com parentes e amigos que ainda pensam em votar no capitão e no general. A poucos dias das eleições, creio que o melhor caminho é falar direto sobre nossa família.
Pense no seu primo negro e fale de dois dos cuidadores que ficam todos os dias com seu avô, bem velhinho. Negros como a maioria da população brasileira, discriminados a cada momento e que não merecem novas ofensas e perseguições vindas de pretendentes ao governo.
Fale também da sua prima, dos seus tios queridos homossexuais e que sabem muito bem enfrentar preconceitos, mas jamais declarados abertamente por um presidente da República.
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Veja que na nossa família há mais homens que mulheres, mas no Brasil elas são maioria e relembre que sua mãe quando viúva teve que criar você e sua irmã sozinha por uma parte da vida. Mas ressalte: vocês dois não se tornaram uns “desajustados”, como sugeriu o general.
Recorde que somos todos descendentes de portugueses, que seu cunhado é de família japonesa, que um de seus tios é descendente de italianos. Que nossos ancestrais ajudaram a construir o Brasil e que talvez não seja bonito nosso governo deixar de acolher venezuelanos e africanos como defendeu o capitão.
Ressalte que nossa família é composta por católicos e ateus, todos defensores da paz, da democracia e da igualdade. Que ninguém gosta da ideia de andar armado para enfrentar a violência que assusta a todos e já nos vitimou, embora possa haver entre nós quem ache legal ver a maioridade penal reduzida para 16 ou 14 anos, idades de seus primos.
Daí, pare e pergunte: com uma família assim, não é esquisito pensar em votar no único candidato que consegue ser racista, homofóbico, misógino, xenófobo e violento ao mesmo tempo?
Depois continue e reflita: numa família composta apenas por trabalhadoras e trabalhadores, onde ninguém “tá com a vida ganha”, como aceitar o fim do 13º salário, a volta da CPMF, a manutenção da reforma trabalhista que acaba com o emprego registrado em carteira, como aceitar a aprovação de uma reforma previdenciária que vai tornar ainda mais difícil a aposentadoria?
E como reagir à privatização da Caixa e do Banco do Brasil? O que acontecerá com os financiamentos para a casa própria quando ficarem sob controle exclusivo de bancos privados?
Por fim, olhe para trás e perceba que nas eleições anteriores nossa família se dividiu entre Dilma e Aécio, entre Lula e FHC/Serra/Geraldo, sempre sem nenhum trauma.
Mas assinale que agora não é dessa divisão que se trata. O destino do Brasil pode sofrer amanhã uma mudança radical, muito semelhante àquela imposta em 1964, que durou 21 anos e vivenciada por poucos da família.
Sobre esse triste período, na condição de seu tio mais velho, eu posso recordar minha própria história que você conhece bem. Posso falar mais sobre minha militância na clandestinidade e da fuga do Brasil para escapar da prisão e da tortura. E dar a todos a minha garantia que algo semelhante não vai ser nada bom, principalmente para meus sobrinhos e sobrinhos-netos.
Ah, vai ter quem diga que não gosta do PT, o meu partido, mas esses sabem que há outros candidatos que também não gostam, se esse for o critério que adotam para votar.
E se nada disso adiantar, relaxe, infelizmente esses seus amigos gostam mesmo das ideias do capitão e suas relações jamais voltarão a ser as mesmas.
Um beijo do tio idoso.
* É jornalista e publicitário, foi editor do site de CartaCapital
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