Cultura

Re-centralizar a cidade

Devemos insistir na ideia do encontro, por mais desafiador que isso pareça. Ele é necessário para que a cidade se reorganize e se redescubra, e isso deveria interessar a todos

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E o que que a Virada tem?

Depende de onde se olha, claro, mas sobretudo como se olha. E, ainda, o que se faz com o que se olha.

Na segunda-feira, o evento ganhou a manchete principal nos dois jornais impressos de São Paulo, destacando a edição de 2013 como a Virada da violência. As ocorrências aumentaram, segundo o balanço oficial da prefeitura e da Polícia, é fato, e foram registradas duas mortes. Não é, no entanto, a primeira nem a única Virada com ocorrência de morte.

Este ano, segundo alguns relatos de participantes e algumas reportagens, a Polícia Militar teria sido inoperante de propósito, como retaliação às novas regras que regem a Operação Delegada. Tais denúncias ainda carecem de investigação mais aprofundada e de explicações mais convincentes, mas, de qualquer maneira, levantam algumas questões importantes para se pensar nas próximas Viradas que, a partir deste ano, tornaram-se oficiais no calendário da cidade.

Caracterizar a primeira Virada de Fernando Haddad como prefeito como a mais violenta certamente talvez não seja mesmo por acaso, mas deixo às redes e a outros comentaristas a tarefa de discutir esse tema. O que interessa aqui é pensar se qualquer que seja o partido de origem de quem ocupa o cargo de prefeito se e qual Virada interessa à cidade.

A Virada Cultural já está em sua nona edição. Criada na gestão de José Serra em 2005, seguiu incólume pelos anos da administração Kassab. A cada ano, no entanto, ergue-se uma espécie de murmúrio contra a Virada. A Virada seria violenta demais, cara demais, excessiva demais, confusa demais, suja demais.

Há um sem número de problemas logísticos em botar quatro milhões de pessoas juntas na rua para se divertir, durante longas horas (pelo menos metade delas durante a noite e a madrugada) e com oferta barata e super acessível de drogas lícitas  — e um pouco menos barata e acessível das ilícitas.

Pode-se discutir e responder a estes problemas de maneiras mais ou menos técnicas — mais polícia? menos polícia? mais iluminação? palco mais apartados? mais transporte? –, mas algumas, que sempre teimam em reaparecer nesses momentos de balanço, como descentralizar, diminuir e dispersar as atrações da Virada,  ferem a própria ideia do que ela acabou se tornando. Por que a Virada,  mesmo que não tenha sido criada para isso, tornou-se um ritual de encontro da cidade consigo mesma.

Complexo e conflituoso, claro, mas também necessário e encantador. Na noite de sábado, saindo do metrô em direção ao Municipal, primeiro ponto do meu roteiro, ouvi de um garoto, 20 e poucos anos: “O que eu gosto na Virada é a circulação.”

É isso que se faz na Virada e com um caráter completamente diferente das outras formas de circulação cotidiana e, mesmo, de outros eventos culturais públicos, mais circunscritos.  Circula-se para circular, circula-se para desfrutar a diversidade de pessoas, circula-se a pé sem pressa para ver as intervenções de artes plásticas ou balançar debaixo do Viaduto do Chá, circula-se correndo para conseguir chegar a tempo no show ou para encontrar os amigos.

São Paulo, mais do que uma cidade partida, acabou por se tornar um conjunto de cidades apartadas, que se desconhecem e, muitas vezes, se temem e se ameaçam.  São poucas as oportunidades de essas cidades se encontrarem e o encontro ainda é muito conflituoso — o que não significa que tenha de ser violento.

Não é e nem será a Virada que terá o poder de desfazer a violência desses conflitos. No entanto, insistir na ideia do encontro, com todas as suas vicissitudes, é necessário para que a cidade se reorganize, se recentralize e se redescubra. E deveria interessar a todos que se interessam por São Paulo.

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