Sociedade
Violência afeta a saúde mental de 1 em cada 3 moradores do Complexo da Maré
Estresse, ansiedade, depressão e tentativas de suicídio são alguns dos problemas apontados pelos mais de mil entrevistados
Um terço dos moradores do Complexo da Maré, conjunto formado por 16 favelas no Rio de Janeiro, afirma ter sua saúde mental afetada pela violência. É o que revela um levantamento inédito na região, realizado pela organização inglesa People’s Palace Projects e pela Redes da Maré. O estudo aponta ainda que 63% dos entrevistados disseram sentir medo de serem alvejados por um tiro onde moram e que 71% indicaram um temor ainda maior com a possibilidade de que alguém próximo seja a vítima.
A pesquisa Construindo Pontes acompanhou mais de mil moradores da região entre 2018 e 2020 e traçou um panorama da violência e seus principais reflexos nessas comunidades.
Segundo o levantamento, a principal forma de violência apontada são os tiroteios. Nada menos do que 44% dos entrevistados estiveram em meio a um tiroteio nos 12 meses anteriores, destes, 73% passaram pela experiência em mais de uma ocasião.
Ainda que nem todos tenham testemunhado tiroteios, 25,5% dos moradores tiveram alguém próximo ferido ou assassinado. De acordo com a pesquisa, 24% viu alguém ser espancado ou agredido nos 12 meses que precederam a entrevista, destes, em 15% dos casos, a situação ocorreu mais de uma vez.
Outra situação relatada por boa parte dos entrevistados foram as invasões domiciliares. Ao todo, 13% relataram que tiveram sua casa invadida nos meses que sucederam a pesquisa. Em 47% destes casos, a violência se repetiu.
São situações cotidianas, que restringem a circulação das pessoas, produzem traumas, afetam a saúde física e mental e reduzem a confiança das pessoas nas instituições – já que muitas vezes é a própria polícia a responsável pelas violações de direitos”, destaca Eliana Silva, diretora da Redes da Maré
Irone Santiago, moradora da Maré, teve seu filho atingido por um tiro. Ela conta que a situação traz consequências ‘inimagináveis’ para quem vive, o que torna o debate importante, mas difícil de ser realizado.
“Como se ter saúde mental se você mora em um lugar onde você não tem o seu direito respeitado?”, questiona. “É complicado falar sobre a pessoa ter saúde mental, não tem como ter saúde mental. É difícil falar sobre estas questões, passando pelo que passei. E ainda o próprio Estado não colabora pra isso, pra que você tenha saúde, muito menos saúde mental”, explica, alertando que o ‘único cuidado’ oferecido são psicotrópicos e remédios que fazem ‘se sentir louco’ sem um acompanhamento adequado.
Violência causou ansiedade e até pensamentos suicidas
Estas ‘situações cotidianas’, conforme apontam os dados, são as responsáveis por graves transtornos entre os moradores do complexo. Problemas como estresse pós-traumático, ansiedade, depressão e tentativas de suicídio são apenas algumas das adversidades que acometem pouco mais de um terço das pessoas que habitam as 16 favelas cariocas.
Nada menos do que 26,6% se disseram depressivos pela violência e 25,5% apontaram sentir ansiedade. Entre aqueles que relataram terem estado em meio a tiroteios, 12% informaram que passaram a ter pensamentos sobre suicídio e 30% pensaram mais sobre morte.
“A violência afeta a saúde mental dos moradores da Maré de forma bem cruel, objetiva e concreta”, afirma James Douglas de Oliveira, morador da favela Rubens Vaz
O jovem conta que, por conta da violência, já foi diagnosticado com crise de ansiedade, depressão profunda e, apesar de não ter tentando, pensou em tirar a própria vida. Por ter sofrido as principais consequências de estar em um ambiente cercado pela violência, Oliveira destaca a importância do amplo debate sobre a saúde mental no âmbito das comunidades. “Precisamos falar de saúde mental na favela, porque é um tema que, em níveis variados, atinge todos os moradores”, defende Oliveira.
Moradores também sentiram os reflexos negativos dos traumas em outros campos da saúde. 44% apontaram dificuldade para dormir; 33% disseram ter perda de apetite; 28% acusaram enjoos e mal-estar no estômago; e 21,5% destacaram que sentem calafrios ou indigestão com a violência.
Irone é um exemplo desse drama. Além dos sintomas emocionais do episódio violento enfrentado pelo filho, também adoeceu fisicamente. “Eu ia pra academia, malhava e achava que estava bem depois do que aconteceu com meu filho, aí passo mal, vou ao hospital e descubro que tinha um aneurisma gigante por conta do que eu vivi”, relembra a moradora que após sofrer as consequências do trauma procurou ajuda especializada para lidar com as questões.
Ações buscam ampliar acesso a tratamentos
Diante do grave panorama apresentado pela pesquisa, a Rede Mares e a People’s Palace Projects desenvolveram ações que buscam combater os principais transtornos psicológicos causados pela violência nas favelas.
Uma destas ações é o Guia de Saúde Mental da Maré, publicação que reúne orientações básicas aos moradores sobre o tema. O guia será distribuído nas 16 favelas que integram o complexo durante a Semana de Saúde Mental da Maré, a Rema Maré, evento programado para este final de agosto. A iniciativa conta com diversas atividades culturais, debates e intervenções e está prevista para ocorrer anualmente.
“As dores e os sintomas de saúde mental não são evidentes como os de uma perna quebrada, deles não se tratam com um remédio como os que usamos para dores de cabeça”, alerta o diretor teatral e principal pesquisador de Construindo Pontes, Paul Heritage. “Nas intervenções artísticas que preparamos para a campanha Rema Maré, perguntamos se devemos lidar com este problema de forma individual ou coletiva. Como posso melhorar a minha saúde mental e ajudar a cuidar dos que estão próximos a mim?”, questiona.
BOLETIM_PESQUISA_CONST_PONTES_AGO21Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.
Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.