Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

A vida como ela era – 2

‘Sem saber falar uma palavra de francês, entendendo apenas o merci beaucoup e o hulalá, foi à luta’, relata Alberto Villas

Estação Austerlitz, Paris. Foto: iStock
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2.

Ele tinha vinte e dois anos quando pisou na Europa pela primeira vez. Portugal de Salazar. Ficou assustado com o número de mulheres vestindo preto nas ruas e com a dificuldade de entender o que as pessoas diziam. Comeu pastéis de Belém e uma bacalhoada à Gomes de Sá que nunca esqueceu. Tomou uma taça de vinho e fechou a conta na pensão da Dona Stella.

 

Pegou o trem e viajou mais de trinta horas até chegar à Gare de Austerlitz, em Paris, e encontrar uma amiga que o esperava com uma rosa vermelha na mão. Foi ser hóspede dela no coração do Quartier Latin, num quarto no sétimo andar do número 4 da Rue Paillet. Sem banho.

Sem saber falar uma palavra de francês, entendendo apenas o merci beaucoup e o hulalá, foi à luta e o primeiro emprego foi para limpar as escadarias do prédio da Sociedade de Engenheiros, em frente a Igreja de Saint Germain-des-Près.

Mudou-se para o 11ème, bairro comunista, um apezinho maior onde hospedou umas duas dúzias de bichos grilos que chegavam do Brasil em busca de dias melhores.

Estudou no Institut Français de Presse e acabou virando jornalista e jornaleiro. Entrevistava exilados para a imprensa alternativa e vendia os jornais na Livraria Portuguesa, Rue des Écoles.

Comia nos bandejões dos restaurantes universitários e, no domingo, costumava fazer comida em casa. Arroz Uncle Bens com carne moída e milho era o seu prato predileto.

Mordeu um pedaço de queijo de cabra, sem saber que se comia com pão.

Aprendeu a arrumar a casa bem arrumada, a lavar roupa bem lavada e a passar roupa bem passada.

Viu coisas inacreditáveis, como um dos bichos grilo cair no Sena de madrugada em pleno inverno e um cearense que insistiu em fazer uma farofa com pó de serragem, jurando que ia dar certo.

Construiu estradas, cuidou de crianças, distribuiu panfletos no Boul’Mich, descascou batatas na cozinha de um restaurante de estudantes até um dia ser promovido a Caixa.

Correu mundo, correu perigo. Foi ao Líbano por terra cortando toda a Europa. Chegou na fronteira de Israel numa época de guerra. Viu Mirages no céu do Oriente Médio fazendo um barulho ensurdecedor.

Dormiu na rua em Atenas, quase morreu de frio em Amsterdã, passou seis horas para conseguir entrar na Bulgária e foi de carona assistir o Grande Prêmio da Bélgica.

Teve dois filhos e a coragem de fazer o parto na clínica do Doutor Frederick Leboyer.

Escreveu poemas que foram publicados no Suplemento Literário do Minas Gerais, na revista Escrita e na Inéditos.

Chorou ao ouvir pela primeira vez Gilberto Gil cantando Não Chore Mais, numa fita K-7 laranja da Basf.

Uma década depois, pegou o avião de volta e desceu no Aeroporto do Galeão, numa terça-feira de carnaval.

[A saga termina na semana que vem]

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