

Opinião
Quanta falta vai fazer Alfredo Bosi. Para o Brasil e para mim
Infelizmente, o nosso tempo foi breve


Quanta falta vai fazer Alfredo Bosi para o Brasil e para mim, especificamente. Foi o grande crítico literário do País até sua morte, por Covid, dia 7 de abril de 2021, em São Paulo, aos 84 anos. De verdade, eu já sabia que ele se despedira da vida muito antes, quando do falecimento da sua mulher, Ecléa, quatro anos atrás. Professora do Instituto de Psicologia da USP, era a sua companheira inseparável, desde quando ambos passaram dois anos em Florença, graças a uma bolsa de estudos concedida pelo governo italiano no começo dos anos 60. Lembro-me dele para sempre na calçada de uma rua do bairro paulistano do Itaim, à porta de um restaurante, onde almoçaríamos juntos para falar do meu penúltimo livro, O Brasil, publicado em 2013 pela Editora Record.
Veio ao meu encontro com um sorriso que nele era inconfundível, miúdo e elegante. Ousadamente eu submetera a minha obra ao seu crivo agudíssimo e, ao cabo, ele decidiu escrever uma carta para desenvolver a sua análise com a pronta cortesia, que nele era típica. Não resisto à tentação de citar o que disse em um momento da missiva: “O narrador nunca deixa de pontuar o cafonismo kitsch colado ao grã-finismo paulista, figurado pelo ponto de vista de um anarcossocialista aristocrático e renascentista chamado Mino Carta. (…) Qual é o desígnio do texto? Levar ao ridículo a nossa burguesia arrivista e puni-la metodicamente, mas sem nenhuma esperança de corrigi-la”.
Nasceu ali, entre uma garfada e outra de um peixe assado debaixo do sal, uma amizade muito sólida, iluminada pelos versos de Giacomo Leopardi e pelo pensamento de Antonio Gramsci, autores que conhecíamos literalmente de cor. Lembro de um jantar na minha casa, em que começamos a recitar em coro um poema de Leopardi, intitulado O Infinito. Infelizmente, o nosso tempo foi breve, mas tive a ventura de conhecer Ecléa, que o acompanhava a vários encontros noturnos à beira de garrafas ilustres. Noitadas memoráveis marcadas pelas afinidades eletivas. Alfredo era um especialista em literatura italiana, que lecionou por um bom tempo na USP, mas foi ainda um estudioso atilado da literatura brasileira, que também lecionou no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH desde 1970. A sua vocação de professor mereceu-lhe inúmeras honrarias no Brasil e mundo afora.
Dois filhos nasceram do casamento feliz, Viviana e José Alfredo. Ao me apresentar a filha, ele me disse, comovido: “É a cara da Ecléa”. Depois da morte da esposa vivia recluso, mas ainda assim consegui encontrá-lo algumas vezes para o meu enlevo, pois com ele sempre havia o que aprender em torno de argumentos que nos empolgavam a ambos. Personagem più unico che raro, conforme soletra uma típica expressão italiana.
Publicado na edição nº 1152 de CartaCapital, em 8 de abril de 2021.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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