Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Não podemos ter tempo de temer a morte

‘Ele sempre achou que poderia controlar esses medos, enquanto iam passando os anos, sem ele perceber’

Foto: iStock
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Desde pequeno ele tinha medo. Medo do escuro, talvez fruto da superstição da sua mãe que o deixou, do dia 3 de agosto até 13 de setembro, dormindo com uma luz acesa, porque era perigoso criança sem batismo dormir no escuro. Acostumou com a claridade e quando vinha a escuridão, um certo pânico.

Foi, com o passar dos anos, cultivando medos em sua trajetória. Com medo de alguém abrir a porta, trancava com chave a do banheiro para que ninguém o flagrasse fazendo um simples xixi.

Medo de subir no muro e cortar os pés com os cacos de vidro cimentados para espantar ladrão, numa época em que ninguém ainda sonhava com cerca elétrica.

Tinha todo tipo de medo. Um choque leve na porta da geladeira, cortar o dedo na hora de fazer ponta no lápis, de escorregar no sabão que sua mãe espalhava no chão da cozinha na hora da faxina, medo de trovão, do foguete Caramuru estourar nas mãos do pai quando festejava o réveillon.

Os medos foram ficando mais sérios. Medo do tarado de óculos que atacava as crianças no caminho do colégio Sion, medo de prova de matemática, medo de arguição oral, medo de uma nota vermelha no boletim, medo de Mister Elcio, o professor de inglês. Medo de mordida de cachorro, medo de bêbado, de policial, medo de assalto, de ser atropelado, de injeção.

Aí veio aquele festival da canção de 1968 e ele cantou com Gal Costa que era preciso estar atento e forte, não ter medo de temer a morte. De nada adiantou.

Ele sempre procurou uma luz no fim do túnel.

Ai veio o medo de andar de avião, de câncer no cérebro quando sentia muita dor de cabeça, medo da namorada engravidar, do sogro flagrar o beijo, do vestibular, do dentista, do primeiro emprego, da ditadura, do exílio.

Ele sempre achou que poderia controlar esses medos, enquanto iam passando os anos, sem ele perceber. Tipo medo do filho nascer com algum problema, de perder o pênalti, de perder a hora, de perder o amuleto que guardava na carteira, presente de um vidente baiana.

Teimoso, nunca quis fazer terapia para conseguir driblar os tantos medos. Medo do pai morrer, da mãe morrer, de um filho pequenininho adoecer, medo de pular de bungee jump, de mergulhar no mar, enfrentar a onda, medo de dirigir um automóvel, de levar um coice na hora de tirar leite da vaca, do elevador despencar, do cadarço enfiar na escada rolante, de ficar doente, de operação, da escuridão novamente.

Sentia medo de abrir a gaiola e soltar o passarinho, acostumado com a prisão, sair voando com dificuldade, bater no muro e cair duro. Sentia medo de falar inglês, mudar de casa, mudar de cidade, de país. Tinha medo de perder os amigos para sempre, da prisão, da tortura, da ditadura.

Já idoso, tem apenas um medo, um medo invisível que veio de Wuhan.

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