Política

Comissão da Verdade de São Paulo pede revisão da Lei de Anistia

Para o presidente do órgão, governo brasileiro deve acatar integralmente a sentença emitida em 2010 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos

Comissão da Verdade de São Paulo pede revisão da Lei de Anistia
Comissão da Verdade de São Paulo pede revisão da Lei de Anistia
Rosa Cardoso, Adriano Diogo e o advogado Belisário dos Santos Jr. na audiência pública da Comissão da Verdade de São Paulo
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Em meio à polêmica sobre a constitucionalidade da Lei de Anistia de 1979, a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo pediu sua revisão. Durante audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, na segunda-feira 10, o órgão disse que fazer uma revisão do texto ou reinterpretá-lo é o “mínimo” diante da sentença proferida em 2010 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, ligada à Organização dos Estados Americanos.

“Temos uma visão baseada na sentença e somos favoráveis à revisão da lei. Acreditamos que, dentro do encaminhamento da legalidade, seja feita ao menos sua reinterpretação”, explicou o deputado Adriano Diogo (PT), presidente da comissão estadual, sobre a aplicação de alguns pareceres da sentença da corte internacional antes mesmo de se rever a legislação de 1979.

Para o parlamentar, enquanto não houver revisão da Lei de Anistia o País não conseguirá caminhar para frente. “O Estado nega ao povo brasileiro o que aconteceu. Quem é que vai se animar em fazer revisão da história sem a possibilidade de se apurar até o fim o que aconteceu?”, questionou em entrevista a CartaCapital.

Coordenadora da Comissão Nacional da Verdade, a advogada e professora universitária Rosa Cardoso concorda que a maior dificuldade para se fazer cumprir a sentença da Corte internacional é a própria interpretação hoje dada à Lei de Anistia. “Para que haja cumprimento na íntegra, deve-se revê-la. Isso não significa que, mesmo com a interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Lei de Anistia, não possam ser adiantadas algumas questões, como a própria busca que se faz no Araguaia.”

Também em 2010, com os votos de Eros Grau, Ellen Gracie, Cezar Peluso (já aposentados), Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello, o STF considerou que a Lei da Anistia seria fruto de um “acordo político” entre governo e oposição para promover a transição democrática. Ocorre que este acordo jamais foi realizado. A lei foi criada para anistiar aqueles que combatiam a ditadura, mas foi travestida de perdão eterno aos agentes estatais brasileiros que violaram direitos humanos da população brasileira.

Soberania

Presente na 50ª audiência pública da comissão estadual, na segunda-feira 10, o procurador regional da República Marlon Alberto Weichert lembra que o Brasil se comprometeu a respeitar a Corte ligada à OEA – uma vez que é signatário do Pacto de San José da Costa Rica, tratado que instituiu o tribunal – e deve fazê-lo por meio de seus órgãos. “Na medida em que a Lei de Anistia não passou pelo crivo internacional, não pode ser aplicada nesses casos de graves violações. O Estado brasileiro vem fazendo pouco para o cumprimento da sentença.”

A presidente da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo, Criméia Alice Schmidt de Almeida, condena a legislação em vigor e urge pela condenação dos agentes de Estado autores de tortura durante a ditadura militar (1964-1985). “A lei não resolveu a questão dos desaparecidos, pois esses não voltaram nem como atestado de óbito”, disse Criméia, que perdeu na Guerrilha do Araguaia o marido André Grabois e o sogro Maurício Grabois. “Nós, familiares, nos negamos a aceitar desculpas enquanto os torturadores não forem punidos.”

O direito de saber o fim levado por desaparecidos políticos também é uma reivindicação da comissão estadual. “O mínimo que o Estado brasileiro deveria fornecer é o paradeiros dessas pessoas. Dos 70 do Araguaia desaparecidos, apenas dois casos foram devolvidos à famílias. Os outros 68 continuam desaparecidos até hoje”, ressaltou Diogo, ao lembrar que do total de 540 desaparecidos políticos no País 154 são de São Paulo.

Para ele, o debate político pede urgência em trazer à luz documentos das Forças Armadas, do Itamaraty e do extinto Serviço Nacional de Informação.

Sentença

Com base na decisão do STF, que acata a Lei de Anistia, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana em relação aos crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura e responsabilizado pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas entre 1972 e 1974, na região do Araguaia, entre Tocantins e Pará. Quando publicada, em 14 de dezembro de 2010, a sentença deu prazo de um ano para o Brasil investigar e, se preciso, “punir graves violações de direitos humanos”. Além disso, exigiu a abertura dos arquivos oficiais do período e pediu uma declaração formal de responsabilidade do Estado sobre as violações do período.

Crítico em relação à lei de 1979, o jurista Fábio Konder Comparato explica que a legislação não tem valor jurídico, uma vez que “desde do Tribunal de Nuremberg não se pode anistiar crimes de lesa-humanidade” ou considerá-los prescritos. “O Brasil, que deveria cumprir a decisão com base no Artigo 68 da Convenção de Direitos Humanos, é o único pais que se mantém fora da lei internacional. Outros, como Uruguai, Argentina, Chile e até mesmo Guatemala, ou aboliram a anistia ou processaram os torturadores”, lembra.

Ainda que suscite mais debates antes de levar a uma possível revisão da Lei de Anistia, Rosa afirma que a importância da sentença da OEA se dá por seu caráter pedagógico. “A sentença nos ensina a primazia dos direitos humanos em relação à soberania dos Estados”, afirmou. “Os Estados civilizados recorrem a organismos internacionais porque querem que se crie um paradigma a partir do direito internacional. Se a gente não admite a força de um organismo internacional, há então uma contradição.”

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