Cultura
Cantoras negras no Rio Grande do Sul levam diversidade à música gaúcha
Em estudo, produtora ressalta a resiliência versus a invisibilidade do grupo de artistas


Há um punhado de nomes. A produtora Silvia Abreu os lista se baseando em um estudo de mulheres negras na música que ela desenvolve, ressaltando a resiliência versus a invisibilidade do grupo. Todas atuam no Rio Grande do Sul.
A partir de seu trabalho, que conta com a parceria da instrumentista Gabriela Vilanova e integra o curso de Arte e Direitos Humanos ligado a UFRGS, surgem os nomes de Anaadi, Andrea Cavalheiro, Delma Gonçalves, Dessa Ferreira, Jordana Henriques, Glau Barros, Loma Pereira, Lúcia Helena, Marietti Fialho, Negra Jaque, Nina Fola, Pâmela Amaro, Raquel Leão e Valéria Barcellos.
“Todas as referências citadas estão ativas, a exceção de Lúcia Helena”, conta Silvia Abreu, que também é jornalista. Lúcia Helena chegou a gravar um álbum pelo selo Velas.
As demais estão em plena atividade, apresentando novos trabalhos. Loma Pereira é uma cantora com larga trajetória profissional, que na década de 1970 participou como vocalista do grupo Pentagrama, de Porto Alegre, e depois lançou alguns álbuns solos.
Dessa Ferreira é piauiense, mas está há quase uma década na capital gaúcha. Sua música mistura elementos afro-brasileiros e indígenas, reverenciando suas origens.
Hoje, carregando a tradição de sambistas no Sul, tem-se a cantora Glau Barros, que se destaca como intérprete de samba. Em 2019, lançou Brasil Quilombo, no qual canta compositores gaúchos e faz releituras de outros autores.
Além de Glau, a produtora cita a cantora e compositora Pâmela Amaro como um dos grandes nomes do samba da atualidade, que estará lançando seu primeiro trabalho em breve pela Natura Musical – a Dessa também teve recentemente projeto aprovado pelo mesmo edital.
Nomes contemporâneos
A lista de mulheres negras na música no Rio Grande do Sul segue: Camila Toledo, Dejeane Arruée, Denizeli Cardoso, Graziela Pires, Luana Fernandes, Monique Brito, Nanci Araújo, Nina Fola e Rosangela dos Santos. Todas são nomes contemporâneos, com exceção de Nanci Araújo, que não atua mais nos palcos.
Dejeane Arruée e Graziela Pires integram o grupo 50 Tons de Pretas. Já Camila Toledo, Luana Fernandes e Monique Brito desenvolvem carreiras individuais. “Elas representam a novíssima geração de cantora gaúchas negras”, ressalta Silvia.
Denizeli Cardoso, Nina Fola e Rosangela dos Santos já estão no cenário musical há um bom tempo. Rosangela é instrumentista e fez parte de orquestras gaúchas. Trabalha tanto na música de concerto quanto na popular brasileira.
“Denizeli é cantora e atriz. Canta blues, jazz e MPB”, diz a pesquisadora de mulheres negras na música gaúcha. Nina Fola é cantora, compositora e percussionista e é a vocalista da banda AfroEntes, com quem tem um disco lançado.
Era do Rádio
Há escasso registro histórico da mulher negra na música. “Sabe-se que no Sul, onde sobrepujou a cultura do charque, os escravizados tocavam seus tambores, dançavam e cantavam para sublimar seu sofrimento cruel”.
De acordo com as pesquisas de Silvia Abreu, na Era do Rádio, destacaram-se as cantoras Horacina Corrêa, Carmem Del Campo, Dalila, Neura da Silva e Maria Helena Andrade. E foi daí que vieram os primeiros registros musicais de mulheres negras no Rio Grande do Sul.
“Todavia, como se sabe que o processo de invisibilização das mulheres negras é histórico, é possível que tenham havido outras, mas as primeiras produções dão conta dessas do rádio”.
No livro Negro em Preto e Branco – História Fotográfica da População Negra de Porto Alegre, organizado pela fotógrafa Irene Santos, a jornalista Silvia Abreu fez um texto sobre as mulheres cantoras do rádio daquela época.
Horacina Corrêa era “a soberana dos programas de auditório”. Neura da Silva fez um recital ao piano no centenário Theatro São Pedro, no centro histórico da capital gaúcha, em 1953. “Imagino o que deve ter sido para uma mulher negra, à época, exibir-se em um espaço elitista como esse”, comenta.
Maria Helena Andrade tinha 15 anos quando obteve o título de Rainha do Rádio. Começou na Rádio Farroupilha. Chegou a ser apelidada de Sapoti do Sul, pois adorava cantar Angela Maria, lembra Silvia Abreu. Casou jovem e passou a se apresentar em cerimônias, o que faz até hoje.
Desse período, a produtora cita ainda a cantora Branca de Neve. “Ela era uma negra retinta, que se consagrou nos programas de auditório da fase áurea do rádio gaúcho, ao lado de outras estrelas como Maria Helena Andrade, Zilah Machado, Elis Regina (sim, Elis) e Lourdes Rodrigues”.
Zilah Machado
A cantora e compositora Zilah Machado (1928-2011), afilhada do inesquecível Lupicínio Rodrigues, é a principal representação feminina do samba gaúcho.
“Considero o grande nome pelo seu protagonismo no campo musical, pelo fato de ser uma compositora em um universo tradicionalmente masculino, que valorizou sua origem étnica e a cultura afro-brasileira, quando ninguém fazia isso no Estado (do Rio Grande do Sul)”.
Segundo a pesquisadora e jornalista, em mais de 200 músicas, a maioria ainda inéditas, ela compunha e cantava a sua matriz cultural.
“Sua importância é estrutural. Foi uma das primeiras a brigar pela valorização dos músicos, em denúncias feitas nos jornais da capital, e também teve a coragem de sair de Porto Alegre para tentar a vida no Rio de Janeiro, o grande centro de tudo, na época”. Silvia chegou a produzir a cantora.
Ela conseguiu, com a ajuda do cantor e compositor Gelson Oliveira, realizar o último álbum da carreira de Zilah, o Ziringuindim. “Uma das grandes alegrias que presenciei foi ela ter recebido o Prêmio Açorianos pelo conjunto de sua obra”.
Atualmente, Silvia Abreu elabora o projeto do Museu Zilah Machado, o qual consiste em um portal que buscará documentar a vida e a obra da artista, por meio de documentos, registros musicais, videográficos e fotográficos.
“Eu acho que uma característica na Zilah que inspira as mulheres de hoje é o fato de ela nunca ter desistido de cantar. Era incrível ver a verve criativa daquela mulher”.
A Lourdes Rodrigues (1938-2014), outra cantora da extensa lista de mulheres negras na música no Rio Grande do Sul, também se considerava herdeira do legado musical do Lupicínio Rodrigues, como Zilah Machado.
Maria da Graça Magliani era figura marcante nos palcos porto-alegrenses, na década de 1970. Graça atuou em São Paulo e no Rio de Janeiro. Gravou com Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e cantou com Ella Fitzgerald, no Teatro Municipal do Rio.
“Ela enfrentou grandes percalços ao longo de sua vida e não conseguiu se adaptar ou encontrar formas de trabalhar com o passar dos anos. Por isso, hoje ela canta nas ruas da cidade, único palco possível na sua atual condição”, relata Silvia Abreu.
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