Artigo

O STF e as gaiolas da ideologia jurídica

O direito não é mais do que um cão que persegue o próprio rabo enquanto late em latim.

Marcos Corrêa/PR
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Em 1922, Lima Barreto escreveu sobre um livro de divagações filosóficas do jurista-medalhão Pontes de Miranda. O texto, intitulado “Um livro luxuriante”, expõe com deliciosa acidez a tradição erudita e bacharelesca do direito, uma máquina de produzir pavões sem muito conteúdo. “Faço estas reflexões não para diminuir o esforço, o talento, a cultura que o livro do sr. Pontes de Miranda – A sabedoria dos instintos – representa”, escreve, “mas por que ele também possui essa feição bem nossa – que não é crime nem pecado – de encaminhar a nossa atividade intelectual para objetos que o meio e o momento não comportam e estão fora das nossas cogitações habituais”.

Barreto procura realçar o fetiche dos juristas em se aventurar nos ares da crônica filosófica. Sendo Pontes de Miranda natural de Alagoas, “pertinho da província de nascimento de Tobias Barreto e de Sílvio Romero”, dois ilustres egressos da tradicional Faculdade de Direito do Recife, viu-se empurrado a seguir o caminho de ambos, pois “pondo eles mesmo na cabeça a coroa de filósofo, obrigaram os seus conterrâneos a o serem também”. Além da ousadia interdisciplinar, Miranda, Barreto e Romero têm em comum a formação em uma área que, embora até hoje costume negar as incursões da ideologia, é talvez a mais ideológica de todas.

O filósofo franco-argelino Louis Althusser ensina que a ideologia não opera como uma espécie de abdução que tira as pessoas da realidade, alienando-as, por assim dizer. Pelo contrário: a constituição ideológica do sujeito ocorre por meio de práticas sociais cotidianas e historicamente consolidadas. Desde sempre entendemos que, para sobreviver, precisamos trabalhar e ganhar um salário, de modo que procuramos alguém que nos contrate ou que queira comprar nossa força de trabalho. Vemos, assim, a reprodução social e ideológica do capitalismo sendo constituída a partir da vida concreta, de onde saem a naturalização da exploração assalariada e das visões de mundo que a sustentam. Ou, como afirma o próprio Althusser, “uma reprodução de sua submissão às regras da ordem estabelecida, isto é, uma reprodução de sua submissão à ideologia vigente”.

Essa naturalização ganha destaque no direito, uma vez que é por meio dele que a apropriação da riqueza coletivamente produzida se legitima no terreno institucional. Hans Kelsen, outro famoso jurista, indagava sobre “o grande mistério do direito e do Estado que se realiza no ato legislativo”. Esse mistério, é bom dizer, só existe para quem se limita aos manuais jurídicos, o que explica as razões pelas quais o jurista tende a enxergar seu objeto de estudo e trabalho como algo fechado e autoexplicativo. A consequência disso é, simplesmente, a pior interpretação possível que se pode dar a fenômenos sociais, a exemplo dos que envolvem recentemente o órgão de cúpula do nosso poder judiciário.

Em votação apertada, o Supremo Tribunal Federal decidiu que os presidentes do Senado e da Câmara não podem ser reconduzidos aos respectivos cargos – mas não sem antes acenar para essa possibilidade, apesar da Constituição de 1988 instituir exatamente o contrário.

A mesma Constituição diz, em prestígio à presunção de inocência, que não é possível que alguém seja preso sem que haja decisão condenatória definitiva, transitada em julgado, mas isso não impediu que o ex-presidente Lula fosse encarcerado e perdesse seus direitos políticos, tornando possível a eleição de Bolsonaro.

A previsão constitucional de que deve haver crime de responsabilidade para que ocorra o impeachment é outra que foi ignorada em desfavor do Partido dos Trabalhadores e de Dilma Rousseff. Por mais cretinos que tenham sido seus algozes na época, eles mesmos cuidaram de reconhecer que a ex-presidente jamais cometera delito dessa natureza (com exceção, obviamente, dos juristas neutros e assexuados a lá Janaína Paschoal e Miguel Reale Jr.). Também é necessária uma boa dose de cretinice para não reconhecer que Jair Bolsonaro há tempos vem passando desse limite, como demonstram as dezenas de pedidos de afastamento com os quais Rodrigo Maia vem engrossando o estofado de sua cadeira de Presidente da Câmara.

Há maneiras diferentes de enxergar essas situações. Uma delas é se limitar a abstrações jurídicas e acreditar que o poder judiciário é um poder angelical imbuído das nobres e envernizadas atribuições de zelar, como um guardião dourado, pelo evangelho constitucional, não estando os atuais componentes da suprema corte correspondendo com as expectativas olímpicas que lhes foram depositadas; outra é fazer a ida e a volta do concreto ao abstrato, analisando os fatos políticos a partir da vida real, da correlação de forças políticas e econômicas, das relações produtivas e da luta de classes ao invés de permanecer tentando encaixar um triângulo em um quadrado e ficar reclamando que não entra.

A ideologia jurídica se estrutura para que apenas a primeira alternativa seja colocada na mesa, deixando claro que o direito não é mais do que um cão que persegue o próprio rabo enquanto late em latim. Ao ilustre jurista idealista, comprometido com a democracia e com a legalidade, cabe apenas reclamar – no Facebook ou no judiciário – que a Constituição não está sendo respeitada, agindo como um padre que dirige o sermão a fiéis pecadores e os aconselha a andar na linha.

“Obras como a deste e semelhantes parecem-me materiais para um edifício; mas não o edifício”, escreve Barreto ainda sobre Pontes de Miranda, aparentemente alinhado com um inesperado contemporâneo do outro lado do mundo, o jurista soviético Evguiéni Pachukanis, que, em sua obra “Teoria Geral do Direito e Marxismo”, afirma que o projeto de um edifício não pode ser considerado o edifício real se não sair do papel.

Eis um bom começo para quebrar de vez as gaiolas da ideologia jurídica.

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