Chico Whitaker

whitaker@cartacapital.com.br

É arquiteto e ativista social, foi vereador em São Paulo pelo PT, secretário executivo da Comissão Brasileira Justiça e Paz, cofundador do Fórum Social Mundial, membro da Coalizão por um Brasil Livre de Usinas Nucleares, Premio Nobel Alternativo de 2006.

Opinião

A boiada nossa de cada dia (ou de como a insanidade nos ameaça)

Em algumas áreas existem forças que tentam segurar cada nova boiada. Em outras, a falta de conhecimento nos deixa desprotegidos

A boiada nossa de cada dia (ou de como a insanidade nos ameaça)
A boiada nossa de cada dia (ou de como a insanidade nos ameaça)
Foto: Andre Coelho / AFP Foto: Andre Coelho / AFP
Apoie Siga-nos no

Se há uma coisa com que estamos quase nos habituando é com as boiadas que o governo que nos desgoverna tenta passar a cada dia. Ele segue à risca as recomendações de seu inefável Ministro contra o Meio Ambiente, em inesquecível reunião ministerial, enquanto nos preocupamos, todos, com a pandemia, que esse mesmo governo torna mais perigosa do que ela seria capaz, se não fosse por ele ajudada. Mantendo-nos assim como trágicos vice-campeões mundiais em número de mortes por ela provocadas.

Em algumas áreas existem forças que tentam segurar cada nova boiada que surge. Mas em outras, a falta de conhecimento nacional do perigo que significam nos deixa desprotegidos. Tal é o caso das boiadas do nuclear, tocadas por um almirante de Marinha, com seu único mas invencível submarino atômico escondido debaixo d’agua.

O maior problema destas boiadas é que são de um tipo que não nos pisoteia imediatamente, e até podem ser vistas como fatores de desenvolvimento. Mas farão mal a muita gente no curto, médio e longo prazo e ao longo de dezenas de gerações de brasileiras e brasileiros – e até eventualmente dos países vizinhos da América Latina. A radioatividade, com a qual se alimentam, é invisível, não tem consistência física nem cheiro nem cor, e não conhece fronteiras. E uma vez ativada nos seus estômagos e intestinos, se espalhada pelos territórios afora continuará initerruptamente a agir – matando ou infelicitando pessoas – durante centenas ou milhares e mesmo milhões de anos, segundo o tipo de átomo que a irradie.

Pouca gente está informada disso, inclusive porque as máquinas que as utilizam são sofisticadas e complexas e nos são apresentadas em termos muito técnicos, supostamente incompreensíveis para nós, mortais, estejamos na planície ou em altos postos dos Poderes da República. Assim, poucos estão sabendo, por exemplo, que agora mesmo, em nossa pátria amada, quatro diferentes boiadas desse tipo afiam seus cascos para fazer suas insanidades, em vários lugares do Brasil, sob o berrante do Ministro-Almirante: em Caetité (BA), em Santa Quitéria (CE), em Angra dos Reis (RJ) e no sertão de Pernambuco, mais exatamente na cidadezinha de Itacuruba, à beira do rio São Francisco..

Nos dois primeiros. o que se pretende é tirar da terra o urânio, mineral mais carregado de radioatividade de que o ser humano dispõe na natureza. Na Bahia, o Ministro citado conseguiu que o chefe do desgoverno vá prestigiá-lo nos primeiros dias de dezembro próximo, com uma rápida passada por Caetité na abertura da exploração de uma nova mina. Mas nenhum dos dois chegará a inalar o gás radônio, que tais minas exalam, e que, quando entra no pulmão, provoca câncer, no médio ou no longo prazo. No Ceará tenta-se, outra vez, lavrar uma mina, que além de espalhar esse gás assassino vai usar tanta água que lembraremos, com saudade, como era bom quando somente o clima provocava secas nesse Estado. Já começou por lá a movimentação para iniciar esse despautério – inclusive seduzindo o governo estadual – mas se espera que a reação social, que renasce frente a tal desatino, construa as necessárias cercas contra essa boiada.

Em Angra, prepara-se o “estouro” de várias sub-boiadas como a retomada da construção de Angra 3 (que não o consigam!). Essa terceira “chaleira radioativa” (nome mais adequado ao que se convencionou chamar de usina nuclear) seria mais um monstro que esperaria, adormecido como as outras Angras, 1 e 2, já velhinhas, o dia em que poderão surpreender os moradores da área e das cidades da região e até de longe delas, como São Paulo e Rio, com um terrível “acidente nuclear severo” como os de Chernobyl e Fukushima. Que Deus nos poupe disso e possamos, o mais depressa possível, “desmontar” essas “chaleiras”.

Mas num sentido exatamente inverso, seus operadores estão também tentando prolongar por 20 anos a vida de Angra 1, como se quisessem aumentar o prazo para que um tal acidente venha efetivamente a acontecer. Só podemos desejar que o Ministério Público leve o Judiciário a dar um basta nessa enorme insanidade.

Esses operadores admitem ainda que estão quase lotadas as “piscinas” refrigeradas em que se deve guardar por dezenas de anos o combustível usado em Angra 1 e 2. E para evitar que tenham que pará-las, por falta de espaço nessas “piscinas”, inventaram de transferir esse combustível, em operação perigosíssima, para recipientes secos implantados numa praia de mar – algo que não se faz em lugar nenhum do mundo – em terreno conhecido como de “terra podre” (Itaorna), ao lado das “chaleiras” que já se encontram lá.

Com isto deixariam um “presente” quase eterno aos moradores de Angra e seus arredores: grandes tubos de concreto e aço cheios de uma quantidade enorme de plutônio, um perigosíssimo sub produto da tecnologia de produção de eletricidade com “chaleiras”, que está dentro do seu combustível usado e se desfaz no lento ritmo de uma metade de sua massa a cada 24.100 anos.

Que acidentes naturais ou provocados não extravasem para o Meio Ambiente nem um pouco desse elemento químico artificial – só existe na natureza em traços – e que é muitíssimo mais radioativo que o urânio! Também não devemos perder de vista que esse mesmo plutônio, escondido na poeira das boiadas do nuclear, é de grande interesse dos militares, em seu sonho louco de ter a “bomba atômica brasileira”. Ele é o melhor combustível para essas bombas, conforme testado em Nagasaki, depois de usarem o urânio em Hiroshima. Menos mal que, neste caso, o Ministério Público já está tomando iniciativas que começam a alertar o Judiciário.

Mas o interesse insano em levar a ameaça radioativa a todos os cantos do país não para por ai: estão tentando recolocar na estrada uma velha boiada que estava dormindo na margem direita do São Francisco: retomaram um antigo projeto de construir em Pernambuco a segunda central nuclear brasileira, desta vez não com três mas com seis ”chaleiras”. Para barrar antecipadamente essa estupidez, os Constituintes desse Estado tinham tomado em 1989 uma sabia decisão: proibir usinas nucleares até que nele se esgotem todas as demais fontes possíveis de eletricidade.

Obviamente um coronel-deputado já apresentou uma PEC para revogar essa proibição, e os mandantes desse eventual crime já conseguiram que, há alguns dias, uma das turmas do STF declarasse que Estados não podem legislar sobre questões ambientais, conforme prevê a Constituição de 88. Mas a votação foi longe de ser unânime, e muita discussão jurídica virá por aí, além da resistência de cidadãos e cidadãs, políticos, movimentos sociais, igrejas e instituições daquele Estado. Com o que a novela das “chaleiras” de Pernambuco poderá ser mais longa que as dos monstros de Angra. A primeira levou 12 anos e a segunda 24 para começarem a produzir eletricidade e seus subprodutos radioativos.

Tudo irá contra nós se essas e outras insanidades persistirem no Brasil, um país que tem tanta coisa mas em que faltam tantas outras, como um mínimo de cultura de segurança, essencial para quem quer ainda usar uma tecnologia como a nuclear, em visível declínio no mundo exatamente por ter grandes problemas de segurança e poder provocar catástrofes sociais, ambientais e econômicas. Precisamos deter as boiadas da insanidade!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo