Cultura

Palmeiras de pai para filho

Desde o rebaixamento, meu filho aprendeu a andar e a falar. Mas não aprendeu o nome de jogador algum. Por Matheus Pichonelli

Na berlinda, perdemos o gosto sequer de sermos apoquentado pelos amigos, que já não veem graça na nossa desgraça. Não fazem piada, não mandam torpedos. Pelo contrário, batem às nossas costas e desejam sorte.
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Soube que seria pai em novembro de 2012. Fazia poucos dias que o Palmeiras havia caído, pela segunda vez em dez anos, para a segunda divisão do campeonato brasileiro, mas isso não me impediu de projetar um futuro para nós três. Forrei a casa com bonecos, camisetas, meias, calção, bolas e livros infantis com o escudo do clube.

Naquele oásis em verde e branco, o clima era de apreensão e esperança: sempre quando batia a insegurança sobre a paternidade, me confortava pensando que tudo se resolveria quando a bola começasse a rolar. Pensava que em breve, muito em breve, teríamos coisas em comum. E que, se tivesse sorte, o futebol seria uma espécie de fio condutor de um projeto de memórias: não importa o que acontecesse, nos lembraríamos sempre do nosso primeiro dia no estádio, das nossas primeiras celebrações, dos nossos primeiros hinos. Teríamos assim um marcador de livros para cada etapa da vida, como foi, pra mim, o título de 93 – o dia em que vi os fogos e a alegria de meu avô, meu pai e meus tios em nossa chácara – ou a Copa Mercosul de 2000 – o dia em que Romário e Juninho Paulista estragaram minha formatura no ensino médio.

A escolha de um time nunca se dá pela cor da camisa. Escolhemos o time pela projeção daquilo que queremos para nós. A decisão não é tomada só a partir de vitórias, mas de pequenas redenções: o esforço a mais, a superação, a capacidade de buscar espaço e novas possibilidades dentro dos mesmos desenhos geométricos, como a trave, o campo, a meia-lua, o circulo central, o ângulo. Na reclusão das linhas pré-definidas, o chute é um escape e o drible, o triunfo dos inventivos sobre o mundo ordinário. A partir disso as identidades são criadas: a raça corintiana, as revelações santistas, os títulos são-paulinos, as elegâncias da Academia.

A vinda de um novo integrante à família me levou a atravessar a Série B com uma alegria latente: era tempo de nascimento e de renascimentos. Pensava nisso a cada gol da equipe comemorado com um fone de ouvido ligado ao rádio em cada noite de sexta-feira. Comemorava sem poder gritar. No quarto ao lado dormia uma criança.

No dia em que voltamos à primeira divisão, milhares de torcedores lotaram o Pacaembu para lavar a alma. Horas antes do jogo, eu ensaiava com meu filho, que já me acompanhava com os olhos e sorria para mim, todos os hinos da torcida. Segurava suas mãos e o balançava, todo molenga, com o joelho: “Palmeiras minha vida é você”. Ele era apresentado assim à blasfema hiperbólica de todo torcedor.

Em casa, a única orientação era para não sair gritando e chutando nada para não traumatiza-lo. O empate em 0 a 0 com o São Caetano frustrou a torcida e meu projeto de catequese. De casa, a 90 quilômetros do Pacaembu, fiz coro ao silêncio daquela arquibancada.

Desde então não faltaram motivos para permanecer mudo. Com a exceção de uma enganosa vitória sobre o São Paulo, no começo de 2014, perdemos ou empatamos todos os clássicos paulistas. E perdemos a maioria dos clássicos regionais. Só contra o Atlético Mineiro, um velho e conhecido freguês, foram quatro jogos e quatro derrotas.

Em casa, o Palmeiras era cada vez menos um assunto. Nesse tempo, meu filho aprendeu a andar e a arranhar as primeiras palavras. Aprendeu a chutar a bola e a me imitar comemorando gol. Mas não aprendeu o nome de jogador algum. O Barcos, aquele atacante oportunista que comemorava gol imitando pirata, foi embora ainda durante a gestação. O Marcos Assunção, que acertava a bola aonde queria, também. O capitão Henrique sumiu da noite para o dia. O lateral direito promissor saiu graças a um erro no tempo de contrato, um erro tão primário quanto errar o próprio nome. O Alan Kardec, que marcava gol dia sim e outro também, se transferiu para o time rival porque o Palmeiras se negou a pagar cinco mil a mais por sua permanência. E o Valdivia, o único fora-de-série que nos sobrou, era quase uma miragem que só atuava em ano bissexto.

Em qualquer clube do mundo, a inabilidade de cultivar jogadores capazes de criar empatia com a torcida é sempre um descaso duplo (com o ídolo e com a torcida). No Palmeiras, é política de Estado.

Os resultados desastrosos não tardaram a aparecer, o que custou o cargo do técnico responsável pela volta à Serie A – fritado nos bastidores como pastel. E, como fosse uma pastelaria, e não uma entidade esportiva, a estratégia para encontrar um substituto descambou para uma pastelada diarreica. Para comandar a esperada reação, o presidente Paulo Nobre foi buscar na Argentina um treinador tão identificado com o clube e o futebol nacional quanto eu com a navegação marítima. Trouxe na bagagem quatro reforços. Nenhum conseguiu se firmar como titular. O barato saiu caro. Muito.

Como a esperança é uma praga que se multiplica, tentava sentar diante da tevê e mostrar para o meu filho algo que valesse a pena ser mostrado: um chute, um drible, um esforço a mais – aquela história dos inventivos contra as linhas retas. Mas o que assistíamos era tudo, menos futebol. Ou era, mas um futebol de regras próprias que permite, por exemplo, gol contra do próprio goleiro. A redenção sobre espaços diminutos se tornava, dessa maneira, na arte do desaparecimento: todos, de repente, se escondiam em trincheiras para fugir da bola. No vazio, os inimigos torpedeavam sem qualquer comoção.

Tanta pastelada não impediu que o atual presidente fosse premiado, no ultimo fim de semana, com um novo mandato. No mesmo dia a equipe conheceu, diante do Internacional de Porto Alegre, a sua quinta derrota seguida no Campeonato Brasileiro, a 20ª no torneio. A derrota deixou o time a um ponto do terceiro rebaixamento. Para escapar da degola, só depende de si, e esta não é a boa notícia.

Na berlinda, perdemos o gosto de sermos ao menos apoquentados pelos amigos, que já não veem graça na nossa desgraça. Não fazem piada, não mandam torpedos. Pelo contrário, batem às nossas costas e desejam sorte. De perigo iminente, viramos um time simpático. “O Palmeiras não merecia passar por isso. Estou torcendo por vocês”, repetem, em uníssono, corintianos e são-paulinos, classificadíssimos para a Libertadores do ano que vem.

No ano do Centenário, o maior presente que um palmeirense pode querer é ter o direito de seguir apanhando dos irmãos mais velhos, em vez de se enganar maltratando os irmãos mais pobres da segunda divisão.

O Palmeiras, nesses últimos anos, se apequenou e se amesquinhou pela própria arrogância. Não aprendeu com os próprios erros. E acreditou que seria sempre maior que seus patrimônios, os bons jogadores e a torcida, que paga cada vez mais por cada vez menos. Ambos começam a rarear. Pudera: se a escolha do time é a projeção do que se quer, será cada vez mais difícil convencer alguém a se projetar no dirigente que te despreza, no lateral que não cruza, no meia que não passa, no atacante que não finaliza, no volante que desaparece. Por isso, a partir deste ano simbólico, não vou fazer qualquer esforço para que meu filho me acompanhe. Pois hoje não há nada nesse time que eu deseje para ele. Nem só de YouTube ou documentários sobre grandes conquistas vivem os novos torcedores.

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