

Opinião
Eleições 2020: No Brasil, vamos distinguindo opressores de oprimidos
‘Com efeito, em meio ao caos gerado pelo golpe de estado de 2016, vamos acordando’, escreve Milton Rondó


“Quem estará nas trincheiras ao teu lado?
– E isso importa?
– Mais do que a própria guerra.”
Ernest Hemingway.
As análises quantitativas das eleições municipais no Brasil foram de excelente qualidade; respeitadas as ideologias das mesmas, houve para todos os gostos.
Entretanto, bem menos numerosas foram as interpretações qualitativas do pleito, embora algumas fossem extraordinárias.
Um primeiro dado importante, levantado por estas últimas: em torno de 25 transexuais foram eleitas e eleitos e 70 LGBTQI+. Nada mal, para um país que praticamente relega as (os) transexuais apenas à prostituição, negando-lhes todas as demais possibilidades de estudo ou trabalho. Recorde-se, também, ser o Brasil o país mais homofóbico do planeta, aquele em que mais homossexuais são assassinados.
Portanto, uma grande vitória da cidadania, da civilidade e da humanidade.
Outro dado qualitativo: em Porto Alegre, cidade onde vivo, a Câmara Municipal renovou-se em 44%.
Destarte, quase metade da Casa será de novos vereadores, uma lufada de ar, de ideias novas, de práticas renovadas.
Demais, 30% serão mulheres, em um país marcado pelas chagas do machismo, da misoginia e do feminicídio.
Ainda melhor, 5 negros e negras foram eleitos, todos eles de partidos progressistas.
Em um país em que aproximadamente 54% da população é afrodescendente, a notícia não poderia ser mais alvissareira.
O mesmo ocorreu em todo o país: em São Paulo a vereadora mais votada, Erika Hilton, é transexual, negra e de esquerda.
Até mesmo em redutos brancos, como Curitiba e Joinville, vereadoras negras foram eleitas.
O quadro demonstra, na verdade, uma mudança epocal para o Brasil: as maiores oprimidas desta sociedade – as mulheres negras – deixaram de votar nos opressores, assumindo elas próprias o protagonismo político e social.
Rompeu-se, dessa forma, o “encantamento” manipulador da minoria branca, o que fica claro inclusive pela negação do racismo estrutural da sociedade brasileira, por parte de personagens tão deploráveis como os ilegítimos presidente e vice-presidente da república, cuja negação sempre confirma o exato contrário.
Com efeito, a realidade não corresponde aos desejos manipuladores das autoridades de fato. Em Porto Alegre, João Alberto de Freitas foi brutalmente espancado até a morte no hipermercado Carrefour, rede essa em que ocorreram numerosas violações de direitos humanos.
As manifestações em todo o país, motivadas por aquele brutal assassinato racista, deixaram claro que a maioria negra sabe quem são os opressores e quem, os oprimidos, não mais manipuláveis nas mãos dos ex-senhores de escravos.
Se notarmos que as referidas manifestações de massa ocorreram há mil quilômetros de Porto Alegre (São Paulo), dois mil (Vitória) e até quatro mil (Fortaleza), perceberemos que algo mais profundo mudou neste país.
Mudou, igualmente, na América Latina: no Peru, dois presidentes foram derrubados no espaço de uma semana; na Guatemala, manifestantes atearam fogo ao Congresso Nacional; na Colômbia, manifestações massivas contra o assassinado de lideranças de esquerda.
Ao Norte, vemos a lenta decomposição do governo de extrema-direita de Donald Trump, cujos extertores melancólicos só não perdem em agonia para a excrescência local. Demonstrando um mínimo de realismo, Trump nomeou novo embaixador para a Venezuela, que ficará sediado na Colômbia. Dessa maneira, foi mais realista do que o fantoche local, que mantém fechada a embaixada brasileira em Caracas, em detrimento da assistência consular aos brasileiros que lá residem e das exportações brasileiras para aquele país.
Vale notar que a estupidez de Bolsonaro e generais cúmplices só não é menor do que aquela da oligarquia que para lá os guindou: levantamento recente demonstra que as exportações brasileiras para as 10 maiores economias africanas decaiu em todas as dez. Do pato da FIESP, silêncio, pois também está em decomposição, rápida e fétida. Idem para parte da imprensa paulista e a cooperação entre o Brasil e a África.
Vale notar que, assim como ocorreu no Brasil em 2018, para impedir a eleição do presidente Lula, dois candidatos à presidência de Uganda foram presos na semana passada, em meio a protestos generalizados no país. Para os senhores do mundo, somos um grande navio-negreiro; enganam-se, mais uma vez, e o embuste está sendo desmascarado aqui e na África, pelos próprios afrodescendentes. Assim é a História.
Com efeito, em meio ao caos gerado pelo golpe de estado de 2016, vamos acordando, aqui no Brasil, mas também em toda a América Latina, distinguindo, opressores de oprimidos, bons de maus.
A propósito, vale citar a obra de Leonardo Boff, “Brasil, concluir a refundação ou prolongar a dependência”, em que se refere ao III Encontro do Papa Francisco com os Movimentos Sociais Populares em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, em 2015, oportunidade aquela em que o Pontífice afirmou: “Quem governa? O dinheiro. Como governa? Com o chicote da desigualdade, da violência econômica, social, cultural e militar, que gera sempre mais violência em uma espiral descendente que nunca parece acabar.”
Concluo, mais uma vez fazendo referência àquela bela obra de Leonardo Boff, na qual cita o Prêmio Nobel de Literatura Albert Camus: “Em meio ao inverno, aprendi que bem dentro de mim morava um verão invencível.”
E é Manu em Porto Alegre, Boulos em São Paulo, Coser em Vitória, Marilia em Recife, Sarto em Fortaleza, Edmilson em Belém e Eloi em Guarulhos! Venceremos!!!
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.