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Opinião

Milton Rondó: Destruição da Amazônia e do Pantanal pode extinguir mais do que o meio ambiente

A cosmovisão indígena é sofisticada, profunda e inatingível pela cultura colonizada do atual desgoverno e da oligarquia do monocultivo

Ailton Krenak. Foto: Purki Ailton Krenak é quem diz que suspender o céu é ampliar o nosso horizonte. Foto: Purki
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No momento em que a Amazônia e o Pantanal queimam, sob a cúmplice incúria do desgoverno, nada melhor do que lembrar que além da gigantesca biodiversidade animal e vegetal que está sendo perdida, soçobra também a alma indígena da nação, indissociável da alma humana.

Com efeito, a cosmovisão indígena é sofisticada, em nada menor do que aquelas geradas pelo cristianismo ou pelo judaísmo, este, atualmente objeto de cobiça e emulação por parte dos neo-pentecostais.

Nesse sentido, vale prestar atenção às palavras de Ailton Krenak, em “Ideias para adiar o fim do mundo”, volume editado pela Companhia das Letras: “Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades – as nossas subjetividades”.

Como uma amostra da riqueza dessas subjetividades – inclusive em democracia, justiça e tolerância – Krenak agrega: “Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos”.

A profundidade dessa cosmovisão, inatingível pela cultura colonizada do atual desgoverno e da oligarquia do monocultivo que o sustenta, tem dimensão universal, “católica” na etimologia grega da palavra, tanto no espaço como no tempo, configurando a própria cruz, articuladora de ambos os eixos.

A propósito, elucida Krenak: “Essa humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô, que a montanha explorada em algum lugar da África ou da América do Sul e transformada em mercadoria em algum outro lugar é também o avô, a avó, a mãe, o irmão de alguma constelação de seres que querem continuar compartilhando a vida nesta casa comum que chamamos Terra”.

A demonstrar a riqueza da subjetividade indígena, o próprio tesouro da linguagem do inconsciente, os sonhos, estão presentes de forma central naquela cosmovisão, como evidencia Krenak: “Quando eu sugeri que falaria do sonho e da terra, eu queria comunicar a vocês um lugar, uma prática que é percebida em diferentes culturas, em diferentes povos, de reconhecer essa instituição do sonho não como uma experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia…Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades. Fiquei muito apaziguado comigo mesmo hoje à tarde, quando mais de uma colega das que falaram aqui trouxeram a referência a essa instituição do sonho não como uma experiência onírica, mas como uma disciplina relacionada à formação, à cosmovisão, à tradição de diferentes povos que têm no sonho um caminho de aprendizado, de autoconhecimento sobre a vida, e a aplicação desse conhecimento na sua interação com o mundo e com as outras pessoas”.

“…os humanos não são os únicos seres interessantes e que têm uma perspectiva sobre a existência. Muitos outros também têm”. (Ailton Krenak).

É tal a sabedoria ancestral indígena que mesmo a queda não é excluída, mas contemplada, como se afere nesta bela imagem de Krenak: “Então, talvez o que a gente tenha de fazer é descobrir um paraquedas. Não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos. Já que aquilo de que realmente gostamos é gozar, viver no prazer aqui na Terra”.

Portanto, a destruição da Amazônia e do Pantanal pode extinguir mais do que o meio ambiente – o que é uma cataclisma em si – mas ir além, consumindo nossas subjetividades, que são as nossas próprias almas.

Para aprimorarmos o entendimento sobre o presente dramático e as possibilidades de superação, vale a pena notar o que disse o Papa Francisco, no encontro que manteve com os movimentos sociais na Bolívia, em 2015: “Aqui, na Bolívia, ouvi uma frase de que gosto muito: ‘processo de mudança’. A mudança concebida não como algo que um dia chegará porque se impôs esta ou aquela opção política ou porque se estabeleceu esta ou aquela estrutura social (…) A opção é a de gerar processos e não a de ocupar espaços”.

Em “Frei Betto e o socialismo Pós-Ateísta”, Fábio Régio Bento acrescenta: “Processo de mudança protagonizado permanentemente pelas organizações de base, pelos movimentos populares, identificando rumos e trabalhando para realizar mudanças estruturais locais, regionais, mundiais”.

Uma boa plataforma para os candidatos e candidatas às eleições municipais: processos de participação que gerem democracia, justiça, cultura, prosperidade e paz.

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