

Opinião
Preciso registrar cinco dias do mês de junho de 2020
Tranquei a vida. A novidade aqui dentro é o disco novo do Frejat e minhas mudinhas de beterraba


Dia 1
Este ano ainda não senti frio no corpo inteiro. No máximo, na mão e no antebraço quando abro a janela para o ar fresco entrar. Controlo a meteorologia pela Anne Lottermann e pelo digital do meu celular. São Paulo 17 graus, Belo Horizonte 16, Brasília 14, Florença 21, Paris 16, Rio 22, Vryses 29 e Yakutsky 23. São as cidades onde me interessa saber se faz frio ou calor, chove ou segue o seco.
Me espanto com os 23 graus de Yakutsky, a cidade mais fria do mundo que, quando chega o Natal, os termômetros marcam 45 graus negativos. É verão em Yakutsky, tão longe daqui. Mais uma semana pela frente. Em cima da minha escrivaninha, o Guia Rápido para uma Vida Longa me ensinando a comer peixe três vezes por semana, a ter filhos, um cachorro, a prestar atenção à postura, a tomar uma aspirina por dia. Hoje é daqueles dias que preciso de, pelo menos, 34 horas para fazer tudo que preciso.
Seis horas da manhã e ouço o ronco do motor lá fora. Desconfio que a quarentena acabou pra muitos. As pessoas usam máscaras no mundo inteiro, um mundo que é pequeno pra caramba, tem alemão, italiano e italiana. Tem coreano, japonês e japonesa. Tem nego da Pérsia, tem nego da Prússia. Tem nego do Zâmbia, tem nego do Zaire. Já que tenho muita coisa pra fazer, gostaria de procrastinar lendo Machado em inglês, The Posthumous Memoirs of Brás Cubas, coqueluche em Nova York. Antes de começar o dia, aproveito o fio de sol e fico observando ele tirar o mofo dos meus sapatos no canto da sala.
Dia 2
A saudade é tão grande que eu até me embaraço. Saudade que sentia quando chegava um envelope verde e amarelo do meu país com aqueles selos de Drummond, de Braga, de Cecília, de Brasília, de jaguatirica. Saudade de abrir o envelope com cuidado para não rasgar o conteúdo grudado em goma arábica. Ver pular lá de dentro os diabinhos da Veja, as fotos dos novos sobrinhos e também dos crescidinhos tomando água de coco em Santa Catarina.
Saudade do pacote de Planeta que muitas vezes chegava estropiado. Eram os deuses astronautas e eu um autoexilado fodido, confundido com guerrilheiro na praça da Savassi. Saudade de jabuticaba, de paçoca Amor, de mini Chicletes Adams, da revista Senhor. Os dias lá fora eram muitas vezes como os que estão sendo aqui nos últimos tempos.
Sinto frio ao abrir a janela, escovo e engraxo meus sapatos mofados, passo álcool nas mãos ressecadas, lavo as lentes dos meus óculos com sabão UFE e sento aqui para colocar uma certa ordem na primeira ficção que estou escrevendo em passos lentos, às vezes quase parando. Queria eu ter um sábado inteiro pela frente para avançar na história, mas o banheiro me espera para ser lavado, as roupas secas na máquina para serem dobradas, as frutas e legumes para serem higienizadas. A horta está seca, as jardineiras das janelas também. Sei que falta chuva nas folhas verdes, falta oxigênio para os pretos, falta leito para os doentes, falta feijão nos pratos de ágata. Porque hoje é sábado, sinto saudade do poetinha com um copo de uísque na mão. É melhor ser alegre que ser triste, alegria é a melhor coisa que existe, é assim como a luz no coração.
Dia 3
Quando você for convidado pra subir no adro da Fundação Casa de Jorge Amado pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos dando porrada na nuca de malandros pretos de ladrões mulatos e outros quase brancos tratados como pretos, pense em João Pedro.
Enquanto morre um brasileiro por minuto, estamos discutindo as bobagens que fala Abraham Weintraub, falando do concurso de máscaras da Damares, de Ricardo Salles, estamos discutindo o toma lá dá cá do centrão, o abre não abre dos shopping centers, a novela ruim que a Globo reprisa, a quarentena de Annita.
Não importa nada: nem o traço do sobrado, nem a lente do fantástico, nem o disco de Paul Simon. Ninguém, ninguém é cidadão. Se você for a festa do Pelô, e se você não for, pense no João Pedro, reze pelo João Pedro, reze pelo George Floyd, pelos pretos brasileiros que morrem em segredo.
Dia 4
A gente só ficava em casa quando o termômetro de mercúrio ameaçava registrar trinta e nove graus. Minha mãe pedia pra gente abrir a boca, colocar a língua pra fora e falar A. Ela examinava por alto e dava o veredito: “Tá vermelha! Tá inflamada!” Abria o estojo Johnson & Johnson de primeiros socorros, pegava um comprimido de AAS Infantil, dava um banho morno na gente, vestia o pijama e fazia uma sopinha. Ligava pro Doutor Aldo Casilo, que recomendava um remédio cor de rosa com gosto de chicletes que a gente tomava e começava a melhorar.
A gente só ficava em casa quando, nas férias, chovia lá fora, sem parar. Brincávamos dentro de casa fazendo estradas imaginárias que saiam do quarto, pegavam o corredor, avançavam pela copa e chegavam à sala de visitas. A gente só ficava em casa de noite, quando o perigo chegava com a escuridão e menino não ia correr risco de topar na esquina com o homem do saco ou coisa parecida.
A gente só ficava em casa quando organizávamos uma pelada no terreiro, quando resolvíamos lavar o pombal, na hora do Rin-Tin-Tin, quando minha mãe colocava a comida na mesa. A gente só ficava em casa quando, no vigésimo primeiro dia, os ovos começavam a eclodir e os pintinhos colocavam o bico pra fora. Havia uma expectativa em saber quantos iriam vingar. A gente só ficava em casa quando ouvia aquele menininho com uma vela na mão cantando já é hora de dormir, não espere a mamãe mandar. Minha mãe vinha e cobria a gente com o cobertor Parahyba e, cansados de guerra, pegávamos no sono na certeza de que amanhã seria um novo dia.
Dia 5
Tenho cicatrizes no braço de vacinas que tomei há mais de sessenta anos. Vacinas deixavam marcas para sempre. Poliomelite, sarampo, catapora, escarlatina. Tomávamos vacina na farmácia do Hormínio. Injeções que doíam muito, davam febre, a gente ficava derrubado, jururu, faltava no colégio. Se forçar um pouco minha memória, ainda sinto o cheiro de éter naquele cubículo da Farmácia Nossa Senhora do Carmo, onde seringas ficavam dentro de uma bacia de alumínio cheia de água quente. Tinha pavor daquele ambiente.
Tantos anos depois, estamos aqui sentados esperando um cientista em qualquer canto do mundo anunciar a vacina para a covid-19. Estamos esperando um plantão do Jornal Nacional, uma edição extra da Lancet ou qualquer coisa assim. Aí poderemos sair de casa e correr até uma livraria para comprar o livro de fotografias sobre o Mais Médicos do Araquém Alcântara, numa banca para comprar a Quatro Cinco Um de junho, na Fabrique comprar um pain aux raisins, no SuperVille comprar uma Fanta Grapefruit ou qualquer coisa assim.
Tranquei a vida. A novidade aqui dentro é o disco novo do Frejat, minhas mudinhas de beterraba que germinaram na horta da varanda, o pão que acabou de sair do forno, o Ovomaltine que está no fim e a Julia Duailibi mostrando no telão o número 1.185. Mil cento e oitenta e cinco mortos nas últimas 24 horas.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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