Opinião
Raquel arrependida, pero…
Sobre Bolsonaro: ‘É um irresponsável, debocha até dos mortos’. Ainda assim, ela votaria de novo no ex-capitão
Semana passada, conversei com Raquel. Era por pesquisa, mas também por desejo de entender. Raquel ainda não completou 40 anos. Mora em São Paulo, num bairro muito longe dos dez cartões-postais da maior cidade da América Latina, num bairro que aparece no cantinho do mapa. Votou em Bolsonaro. Queria alguém honesto. Queria tirar o PT.
Raquel tem medo, aliás, tem dois medos, do coronavírus e do desemprego. Usa máscara, luva, álcool gel, lava as mãos como manda o figurino. Raquel queria fazer quarentena, mas não pode porque “as contas continuam chegando e a situação está ruim lá em casa”. No trabalho mandaram embora metade dos funcionários. “Vou trabalhar com medo a cada dia de ser demitida, quem vai pagar as coisas dos meus filhos?”
Está indignada com “esse pessoal que tem grana, que poderia ficar em casa”, mas sai às ruas como se nada estivesse acontecendo. Irresponsáveis. Está mais indignada ainda com o pessoal que sai em carreata e manifestação.
“Não é o momento de gritar, é momento de ficar em casa, é momento de silêncio.” Está decepcionada com Bolsonaro. “É um irresponsável, deveria dar exemplo, é o presidente, não um moleque, debocha até dos mortos.”
Mas Raquel perdoa: “Ele ainda é o único político honesto do Brasil e não faz por mal, só que ele, às vezes, exagera, com esse jeitão bronco dele”, mas o importante é que ele é autêntico, “não como esses políticos que só dizem mentira”. Não suporta mais os filhos de Bolsonaro: “Ele é presidente, não pai. Esses aí têm muita coisa suja”.
Raquel é evangélica. Da Assembleia de Deus. A igreja está fazendo tudo direitinho, só live para os cultos. Raquel sente falta dos abraços na igreja. “Na igreja, sim, dá para confiar, reparte comida, gás, cesta básica”, não como o João Doria, “esse mentiroso, que se elegeu como BolsoDoria e agora é como se não soubesse nada de Bolsonaro.” Raquel nunca votaria no Doria. “É um carreirista, desonesto, está aproveitando esta crise para lucrar em cima do Bolsonaro e se candidatar para 2020. Ele está pouco se lixando com os mortos.” Bolsonaro, não. “Bolsonaro se importa com as pessoas.”
Raquel está desiludida com tudo. Com menos de 40 anos, fala como uma senhora de 60. “Sou eu, minha família e a igreja. Os políticos não estão nem aí para a gente. Se a gente morrer, para eles tanto faz.” É triste escutar a Raquel. Se eu pudesse defini nossa conversa num sentimento, seria abandono, medo, talvez.
E o PT, Raquel? “Ah, com o Lula o Brasil estava melhor, não dá para negar isso, mas depois ele virou o político mais corrupto do Brasil. Já votei nele, não voto de novo. Eu me senti traída, confiei muito nele. É como num relacionamento quando alguém te trai, sabe?”
Se em 2022 Bolsonaro se candidatar, Raquel vota nele. “Ele comete muitos erros, me decepcionou bastante, mas acho que é porque ele não tem assessoria, não faz por mal.” Se Bolsonaro não se candidatar, talvez vote no Moro. “Ele foi um traíra com o presidente, isso não se faz, mas penso que ele ainda é boa gente, só cometeu um erro levado pela ganância.”
Senão, Raquel não quer votar em ninguém. “Não vale a pena, professora. No fundo, estamos sozinhos.”
No fundo, estamos sozinhos.
Depois dessa frase, não há muito mais o que dizer.
Obrigada por querer conversar comigo, Raquel.
“Foi muito bom, a gente gosta de ser escutada.”
Desligo o computador. Nossa conversa foi pelo Google Meet.
Palavras em tempos de pandemia.
Eu volto para a minha realidade. Meu bairro aparece nos dez cartões-postais da maior cidade da América Latina.
Há milhões de Raquéis… Como entender o Brasil se a gente não entendê-las?
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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