Cultura

Memórias do exílio

As anotações numa velha caderneta “Clairefontaine” ainda pulsam

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Nessa época do ano, quando o inverno apertava, os ossos começavam a doer. De nada adiantava ligar aquele pequeno aquecedor a gás que esquentava apenas um dos três cômodos da casa. Não podia ser reumatismo aos 27 anos de idade. Não era possível, era frio mesmo.

Tentava abrir a janela número dois para deixar que entrassem todos os insetos, mas a janela emperrada do velho apartamento na Bastilha não abria. O silêncio muitas vezes se espalhava por aquele pequeno espaço sublocado de um arquiteto mineiro e permanecia assim durante dias.

Lá fora, o fog, a chuva fina, o brilho da água no asfalto e os luminosos em língua estrangeira piscando me levavam até Londres, onde dois antigos compositores baianos procuravam também o sol dourado, as coisas do nosso país.

Um compunha em inglês e o outro mandava notícias via Intelsat para o Pasquim. As cartas não chegavam mais, nenhuma revista ou recorte de jornal. Líamos folhetos clandestinos vindos do sul, o manual de guerrilha de Carlos Marighela e os fascículos da Maspéro.

Subíamos o Boulevard Saint Michel, quebrávamos à direita, ganhávamos o Boulevard Saint Germain, onde uma velhinha, numa barraca na boca da estação do metrô chamada Odeon, oferecia balas perdidas, coloridas e cheirosas para nossas bocas. Un franc! Un franc! dizia ela, com uma voz rouca, para as pessoas que passavam por ali.

Sentia um clima comunista no ar enquanto percorria aquelas ruelas, mas não era verdade isso. Parava religiosamente todos os dias na livraria do Zé Maria Rabelo, onde Dalton Trevisan ficava ali exposto à visitação pública numa vitrine com fitinhas verdes e amarelas. Queria ser como ele, Dalton, saber escrever contos curtos e só.

O cemitério dos elefantes era uma boa ideia que escapou da minha Hermes Baby creme, com teclado adaptado para o português. Queria dar aos meus contos nomes de quadros, de obras primas espalhadas pelos museus do mundo. De Moscou a Reykjavik. Mulher comendo maçã. Cão dormindo. O tocador de flauta.

Queria subverter as fábulas de Jean de la Fontaine como Millôr Fernandes fez um dia, transformando-as em fábulas fabulosas. O Macorvo e o Caco. Sonhava com a raposa e as uvas, uvas que estavam realmente verdes. Forjar do trigo o milagre do pão, participar ativamente do Evangelho Segundo Cristino, a ópera apresentada por Geraldo Vandré na Igreja de Saint-Germain-des-Prés, naqueles anos distantes, tão longe dos meus pais, dos meus irmãos, dos meus sobrinhos.

A música popular brasileira ardia em chamas, febre alta. Eram muitos e muitos cantores que gravavam na Continental e os discos iam chegando um após o outro. Nothing! Eu atravessa as ruas do décimo-primeiro arrondissement pensando em Walter Franco porque Walter Franco sabia o que tinha naquela cabeça: I’m just nothing now/Looking/To the empty space!

Eu também não fui ali pra ser feliz, me limitava a olhar para o espaço vazio na esperança de ver a cosmonauta Laika voando sob a minha cabeça, no céu que nos protegia. Mas não, nada de cadela voadora lá no alto, nada de foice e martelo aqui na Terra.

Meus pais não sabiam, mas meu cabelo crescia e eu agora usava tamancos suecos e meias de lã. Era um tempo em que eu ainda sonhava muito. Sonhos incríveis, toda noite, como aquele em que peguei o primeiro avião com destino a Ilha de Wight, só para ouvir Jards Macalé cantando Mambo da Cantareira: Só mesmo vendo como é que dói/Só mesmo vendo como é que dói/Trabalhar em Madureira/Viajar na Cantareira/E morar em Niterói.

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