Justiça
As bases ideológicas da injustificável manutenção da prova do ENEM
Weintraub, comandante de alta patente do bolsonarismo, se apoia em sofismas para justificar a realização do ENEM
O historiador Jacob Talmon ganhou notoriedade teorizando acerca do elo entre as revoluções jacobina e bolchevique. Segundo ele, ambas compartilhariam da mesma “democracia totalitária”, um traço comum entre Rousseau e Stalin.
Os parâmetros de Talmon têm sua fonte em um liberalismo que, ao seu ver, contrapor-se-ia à violência despótica desses dois fenômenos. Por recorrer a dogmas dessa natureza, acaba caindo nos inevitáveis vícios metodológicos de quem, para reafirmar suas teses, não vê outra escolha que não falsear o passado.
Por exemplo, Talmon faz suas considerações sobre a França jacobina e a União Soviética não levando em conta a realidade geopolítica do mundo – que envolve guerras civis contra-revolucionárias, imperialismo, laços de dominação colonial, derrocada de regimes absolutistas, etc – e sua divisão espacial do trabalho, concretudes indesviáveis em qualquer análise séria. Sua balança, pelo contrário, é a do paraíso das hipóteses, teorias e valores abstratos do credo liberal, que nunca foram respeitados na Europa ocidental e tampouco na América do Norte.
O filósofo italiano Domenico Losurdo chama de “Sofisma de Talmon” essa ginástica ideológica baseada na abstração do mundo concreto. O sofisma está presente no método que leva a discussão aos céus ignorando que, na terra, a história do liberalismo é a da escravidão, do racismo, do imperialismo e da dizimação de povos originários. Basta olhar para a conquista do Oeste estadunidense, regada a sangue e deportações de pele-vermelhas, e para as colônias na Ásia, África e América Latina, onde as metrópoles europeias nunca se preocuparam em aplicar o ideário iluminista do qual se vangloriam por ser seu berço.
O esquecimento da vida real não raro se conjuga com tentativas de reescrever a história. É no revisionismo que se assentam terraplanismos como o de que o nazismo é de esquerda e que foram os EUA, e não a União Soviética, que deram a mais definitiva e substancial contribuição para a derrota da besta nazista. Duas mentiras que dão o grau da desonestidade intelectual de revisionistas como o próprio Talmon.
Se nas sociedades escravagistas e feudais o domínio político e econômico era legitimado na crença da delegação divina de poderes aos dominadores, a narrativa de sustentação ideológica do capitalismo não é muito diferente. Talmon é a prova viva de que somente se descolando da realidade é possível defender que o mundo do liberalismo é o das propagandas da Coca-Cola. É da igualdade e da liberdade meramente formais, características inerentes ao modo de produção capitalista, que saem sandices fundamentalistas como a ideia de meritocracia, ou de que basta nos esforçarmos para que um dia cheguemos lá.
É nesse alicerce de barro que se equilibra o ministro Weintraub ao defender que o ENEM não deve ser adiado uma vez que os prejuízos da pandemia do novo coronavírus estariam atingindo todos os estudantes de forma indistinta. Logo, se o prejuízo é geral, ninguém perde, vez que estão mantidas as condições originais de competição.
Não é preciso ir muito longe para apontar a estupidez que é a adoção do discurso meritocrático em uma sociedade na qual cem milhões de pessoas sequer possuem acesso a saneamento básico.
Fazer isso num contexto de pandemia, então, soa doentio. A peça publicitária do MEC em favor da manutenção da data original do ENEM, mostrando jovens brancos e bem nutridos se comunicando em seus quartos por meio de celulares de ponta, escancara um desapego à realidade que não é fruto de um soluço, mas parte fundamental de um método que, para poder manter seus dogmas vivos, precisa virar o pescoço para fatos como o de mais de um terço dos domicílios brasileiros não ter acesso à internet e metade da população viver com a míseros R$ 413,00 mensais.
As armas de Weintraub, um comandante de alta patente do bolsonarismo, estão no campo oposto ao da verdade. Fazer vista grossa aos fatos é parte de sua estratégia, de modo que não existe a obrigação moral ou política de prestar contas com a vida real quando confrontado com ela. O ministro e demais asseclas que compõem as hostes conspiracionistas do ex-capitão se comportam como o bêbado que procura a chave perto de um poste e não da porta de casa, onde deixou cair, justificando que ali é mais iluminado.
Já passou da hora de nos preocuparmos mais com o poste e menos com a chave.
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