Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

O último carnaval de Paris teve gosto de saudade e esperança

Todos, um dia, já gostaram muito de carnaval. Mas, desde que foram expulsos das terras brasileiras, aquela euforia havia ficado para trás.

O último carnaval de Paris teve gosto de saudade e esperança
O último carnaval de Paris teve gosto de saudade e esperança
É fim de carnaval no Brasil, época onde pessoas brancas se mostram incomodadas com o que seria o "politicamente correto"
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A ideia surgiu quando um pequeno grupo de uns dez brasileirinhos, todos filhos de exilados, começou a descer as escadas do quinto andar da Maison du Brésil, em Paris, na maior algazarra. Fazendo trenzinho, eles pulavam de degrau em degrau e cantando: “E a turma lá de trás gritou: xi!/Tem nego bebo aí/Tem nego bebo aí”.

Nascidos no exílio, a mais de 10 mil quilômetros do país tropical, terra do futebol e do carnaval, nunca viram de perto um carnaval de verdade, aquela multidão colorida e enlouquecida nas ruas com chuva, suor, cerveja e um leve cheiro de lança no ar. Antes de formar o trenzinho da folia, ainda na sala de aula, um deles perguntou para o monitor:

— Imaginação é verdade ou mentira? E carnaval? Carnaval é verdade ou mentira?

 

Tinha menininho nascido em Argel, em Berlim, em Santiago, em Havana, na Cidade do México, mas todos brasileirinhos.

O frio lá fora não era condizente com aqueles papéis picados ali no chão e algumas bandeirinhas dependuradas no teto, que mais lembravam uma festa de São João. Mas era carnaval para os pequenos, meninos e meninas que confundiam raposa com renard, pomba com pigeon, lobo com loup e Chapeuzinho Vermelho com Chaperon Rouge.

Aqueles brasileirinhos nunca ouviram falar em Dodô & Osmar, em Mangueira, Salgueiro ou Beija-Flor. Nunca sentiram saudade do Clube das Pás, dos Vassouras, dos passistas traçando tesouras nas ruas repletas naquele mafuá.

Aquele carnaval organizado pelo Clubinho do Saci, uma escolinha criada para os filhos dos exilados, era mais ou menos verdade. Para não perder a identidade, organizavam todo fevereiro um pequeno carnaval, mesmo sem serpentinas, mas com confetes brancos feitos por eles com um velho furador de papel.

Foi naquela hora, com uma Pentax Trip 35 e um bloquinho nas mãos anotando tudo para escrever uma reportagem sobre a anistia para o jornal Movimento, que surgiu a ideia de fazer um carnaval em Paris, uma despedida. Despedida porque alguns amigos estavam arrumando as malas, organizando pequenos contêineres de aço para pegar aquele velho navio, ou decolar nas asas da abertura prometida por João Baptista Figueiredo.

A ideia do carnaval foi passada pra Joca, que passou pra Darci, que passou pra Cacá, que chegou a Zeitona, o mais animado de todos. Cinco dias antes, ele havia recebido pelo correio um envelope verde e amarelo recheado e quando abriu voou confete colorido para todo lado. Pura gozação de um amigo de Olinda, que todo fevereiro fazia essa brincadeira. Mas esse ano não ia ser igual àquele que passou. Ele queria vê-lo em Pernambuco, naquele fevereiro de 1980, depois de tanta saudade, de tantos e tenebrosos invernos longe de casa.

A ideia foi passada pra Joca, que passou pra Darci, que passou pra Cacá, que chegou a Zeitona, o mais animado

A ideia espalhou-se pela Cidade Luz, subindo as ruas de Montmartre, percorrendo as ruelas do Quartier Latin, ganhando os gramados dos jardins de Butte Chaumont. A ideia passou de Zeitona pro Adolfo, que passou pro Oscar, que passou pro Jorge, pro Luiz e chegou a Osmar.

A vaga lembrança do carnaval vinha das marchinhas que diziam: “Bandeira branca amor/ Não posso mais/ Pela saudade que me invade/ Eu quero paz”. Daquela marchinha que se espalhava pelo salão divertindo muita gente: “Olha a cabeleira do Zezé/ Será que ele é/ Será que ele é/ Será que ele é bossa nova/ Será que ele é Maomé?”.

Houve apenas uma reunião para organizar a festa. Foi no quartinho do Ceará, no 11ème arrondissement, perto da Estação Voltaire do metrô. Fechou-se o dia, o local, quem cuidaria da decoração, da divulgação e do som? Joca lembrou da marchinha que diz “Índio quer apito/ Se não der, pau vai comer” e lembrou que essa não poderia faltar. Foi quando Adolfo avisou que tinha em casa um disco de vinil, meio maltrapilho, riscado, chiando, mas que dava para o gasto.

Muitos Carnavais!, do Caetano, disse ele!

Aquele que tem “A Filha da Chiquita Bacana”, que tem “Piaba”, “Um Frevo Novo” e “Atrás do Trio Elétrico”. Zeca lembrou de uma velha fita cassete da Basf que trouxera na mochila, quando deixou o Brasil nas asas de um avião da Varig rumo ao Chile. Lembrava de algumas marchinhas, uns xaxados e uns frevos rasgados.

O carnaval daquela turma havia parado no tempo. Em cinco dias tudo estava organizado. Limparam o salão, trouxeram uma enorme caixa de som, enfeitaram os pilotis com papel crepom, até purpurina espalharam pelo chão. O salão da Maison de Jeunes Les Hauts de Belleville era uma festa e estava pronto para a folia de Momo.

O carnaval que aquela turma tinha na lembrança não era o dos blocos de sujos nas ruas do Recife, do Rio, de Salvador, de Belo Horizonte, de Teresina, de João Pessoa. Homens vestidos de mulher, máscaras escondendo o rosto, deliciosas Cleópatras e aquela folia toda: “Ô jardineira por que estás tão triste?/ Mas o que foi que te aconteceu?/ Foi a Camélia que caiu do galho/ Deu dois suspiros e depois morreu”.

Todos, um dia, já gostaram muito de carnaval. Mas, desde que foram expulsos das terras brasileiras, aquela euforia havia ficado para trás, sumido na poeira da estrada. A militância política não casava com os surdos, os bumbos e os tamborins. 

Ninguém mais se lembrava de Lamartine Babo, de Caninha, de Noel, de Haroldo Lobo, Benedito Lacerda, de Paquito, nem de Sinhô. Ninguém mais se lembrava das marchinhas de João Roberto Kelly, das fantasias de Clóvis Bornay nas capas da revista Manchete, do Baile do Vermelho e Preto, do Bola Branca, do Gala G, das gostosas do Sargentelli, das certinhas do Lalau.

O carnaval, o futebol e a televisão eram águas passadas. Passavam em branco por aquela Paris todo início de ano, cidade que abrigava 10 mil exilados, gente que sonhava em derrubar a ditadura e voltar para o Brasil, comer uma coxinha, beber água de coco no coco.

Bloco. Na França, o carnaval era um retrato na parede. No Brasil, quem desfilava era o ditador Figueiredo. Foto: Divulgação

Ninguém mais lembrava do Jararaca cantando “Mamãe eu quero/ Mamãe eu quero/ Mamãe eu quero mamá/ Me dá chupeta/ Me dá chupeta/ Me dá chupeta/ Pro neném não chorar”; ninguém mais lembrava dos Vocalistas Tropicais cantando “Tomara que chova/ Três dias sem parar”; de Blecaute cantando “Maria Candelária/ É alta funcionária/ Caiu na letra óóó”.

Ninguém mais se lembrava de Ângela Maria cantando “A noite é linda/ Nos braços seus/ É cedo ainda/ Pra dizer adeus”; ou de Dalva de Oliveira com a sua Bandeira Branca:“Bandeira branca/ Amor/ Não posso mais/ Pela saudade que me invade/ Eu peço paz”.

O carnaval era apenas um retrato na parede. Nem mesmo da zoeira de um Fla-Flu na geral do Maraca ninguém se lembrava mais. O gosto da paçoquinha Amor, o arroto do guaraná Gato Preto, o espocar do Mandiopã, o gosto intragável da Emulsão Scott, o sabor de abacaxi da bala Chita, o Polvilho Antisséptico Granado para curar a frieira do pé, tudo era passado.

O resquício de um carnaval longínquo chegava todo fevereiro naqueles envelopes pardos coalhados de selos de vitórias-régias, tucanos, maritacas, araras, jaguatiricas, capivaras e um Cristo Redentor de braços abertos sobre a Guanabara. Vinham também fotografias com um colorido desbotado de sobrinhos fantasiados de arlequim, de índio Apache e de pirata da perna de pau.

Ninguém conseguia entender a felicidade de um país tropical, abençoado por Deus, bonito por natureza e pilotado por generais

Nos porões da livraria La Joie de Lire, os brasileiros discutiam noite adentro estratégias de sobrevivência, as ditaduras na América Latina, os Montoneros, os Tupamaros, os Sandinistas, Marx e Engels. Discutiam o amor morto pelo futebol, o ópio do povo nas tardes de domingo diante da televisão. E falavam até do carnaval que arrastava multidões atrás do trio elétrico. Ninguém conseguia entender a felicidade de um país tropical, abençoado por Deus, bonito por natureza e pilotado por generais.

Caía uma neve fina em Paris naquela noite de carnaval brasileiro. As luzes foram se acendendo aos poucos, o ar-condicionado foi ligado, o som foi testado. Para beber, alguns coolers de Kronnebourg e algumas garrafinhas de água Contrex. Aquele pedacinho de carnaval em Paris não lembrava em nada aqueles velhos carnavais.

“Joca foi de pirata/ Zeca foi de índio/ Ceará foi de Lampião/ Adolfo, foi de palhaço/ Ana foi de Emília/ Bia foi de Saci/ Lica de odalisca.”

Foram mais de duas horas de carnaval ali naquele salão no 20ème arrondissement. A festa foi acabando aos poucos, com gente indo embora para pegar o último metrô. Só ficou Beatriz, vestida de Saci Pererê. Ela usava um macacão preto, que ia do pescoço aos pés. Uma boina vermelha e um cachimbo no bolso, que, de tempos em tempos, ia para a boca só para fazer graça.

Beatriz perdeu o último metrô e resolveu voltar para casa caminhando pelas ruas de Paris. Desceu a Borrégo, pegou a Télégraphe, percorreu todo o muro do cemitério de Belleville e seguiu em frente. Fazia muito frio na calada daquela noite de carnaval em Paris e a última lembrança que tenho é a de Beatriz chegando ao prédio no qual morava, subir sete andares de escada até o quartinho onde morava e, cansada de guerra, jogar-se no tatame no canto do cômodo, o único lugar que tinha para cair morta.

Dormiu como um anjo, apesar de ainda ecoar nos ouvidos o zumbido do último carnaval em Paris, daquele samba que fechou a festa, samba que nunca saiu da sua cabeça:

“Pode ir armando o coreto/ E preparando aquele feijão-preto/ Eu tô voltando/ Põe meia dúzia de Brahma pra gelar/Muda a roupa de cama/ Eu tô voltando/Leva o chinelo pra sala de jantar/ Que é lá mesmo que a mala eu vou largar/ Quero te abraçar, pode se perfumar/ Porque eu tô voltando”.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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