Economia
Brasil terá 2ª maior delegação em evento antineoliberal do papa
Encontro ‘A economia de Francisco’ debaterá humanização econômica, desigualdades e natureza


O Brasil terá a segunda maior delegação em um encontro convocado pelo papa Francisco que discutirá em março, na Itália, a necessidade de “realmar” a economia e formas de fazê-lo. Irão para lá de 120 a 140 pessoas, com até 35 anos – o chamado do Vaticano mirou os jovens. Só a comitiva italiana levará mais gente a Assis, cidade de 28 mil habitantes onde São Francisco fez seu voto de pobreza no século XIII.
“A ideia do encontro é tirar o dinheiro da centralidade da economia”, disse Eduardo Brasileiro, da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEF), em debate em 30 de janeiro, em Brasília. O papa, prosseguiu ele, é crítico do que chama de ‘Deus mercado’, entidade intangível venerada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e seus parceiros da Sociedade Mont Pèlerin, o “comitê central” do neoliberalismo internacional.
Não é difícil entender o interesse de brasileiros pela iniciativa papal. Embora a delegação não vá ter católicos apenas, está aqui o maior número de adeptos dessa religião, metade (conforme uma pesquisa Datafolha divulgada em janeiro) da população de 210 milhões. Em números absolutos, é um pouco mais do que o México (uns 100 milhões de católicos).
Além disso, em desigualdade de renda, um dos temas do evento “A economia de Francisco”, o Brasil é vice-campeão. O 1% mais rico embolsa 28,3% do PIB, informou a ONU em dezembro. Só abocanha mais no Catar (29%), bem menos populoso (2,7 milhões). Em terceiro, o Chile (23,7%), inaugurador, nos anos 1970, do neoliberalismo que hoje leva a recordes de concentração de renda.
“A economia precisa ser ‘realmada’”, hoje ela “amplia o fosso entre as pessoas” por meio do “neoliberalismo”, que bota o “desejo ilimitado” da minoria acima das “necessidades de vida” da maioria, segundo o economista Guilherme Delgado, do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental (OLMA), presente ao debate de 30 de janeiro. “O papa tem clareza de que o que ele chama de ‘idolatria do dinheiro’ causa uma catástrofe”, disse.
Catástrofe inclusive ambiental, outra preocupação do papa, conforme a carta em que anunciou o encontro de março próximo. “Um evento que me permita encontrar-me com quantos estão a formar-se e começam a estudar e a pôr em prática uma economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a devasta. Um acontecimento que nos ajude a estar unidos, a conhecer-nos uns aos outros, e que nos leve a estabelecer um ‘pacto’ para mudar a economia atual e atribuir uma alma à economia de amanhã.”
Delgado vê nesse trecho uma terceira inquietação de Francisco, ao lado da ambiental e com as desigualdades: o desemprego estrutural, ou seja, a impossibilidade de botar todo mundo no mercado de trabalho, outra obra neoliberal. O Brasil fechou 2019 com 11,6 milhões de desempregados (taxa de 11%) e 4,6 milhões de desalentados (desistiram de procurar vaga, por ser inútil). Dos 94,6 milhões de ocupados, 38% não tinham carteira assinada ou trabalhavam por conta própria.
Outra pista do olhar de Francisco para os trabalhadores é a data da carta, 1o de maio. O texto só foi divulgado pelo Vaticano em 11 de maio de 2019. Nesse dia, Francisco recebeu um americano vencedor do Prêmio Nobel de Economia (em 2001), Joseph Stiglitz, que é pregador da urgência de atacar as desigualdades. Para ele, somente o papa tem condições de liderar um pacto global contra elas.
Dois ganhadores do Nobel de economia, ambos indianos, participarão do encontro “A economia de Francisco”, que será realizado entre os dias 26 e 28 de março. Um é Muhammad Yunus, idealizador do microcrédito e dos chamados negócios sociais, premiado em 2006. O outro é Amartya Sen, estudioso da pobreza e do bem-estar social, laureado em 1998.
Mais um rosto conhecido é o economista americano Jeffrey Sachs. Ele ajudou a disseminar ideias neoliberais no passado, mas parece ter tido um estalo. Em 2012, disse publicamente que “em toda parte estamos assistindo a uma epidemia de comportamentos criminosos e corruptos nos vértices do capitalismo. Os escândalos bancários não representam exceções nem erros, são fruto de fraudes sistêmicas, de uma avidez e arrogância sempre mais difundidas”.
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