

Opinião
Natal como um arquétipo do verbo que se torna história
Lemos a natureza, a humanidade, a justiça e paz: em renascimento, em ação e salvação


Além do aspecto da crença religiosa, podemos considerar o Natal como um arquétipo do verbo que se torna história, ação, humanidade. Assim São João, “o discípulo que Jesus amava” – como se auto-intitulou o próprio evangelista, iniciou seu evangelho.
Como interpretamos essa conversão do amor – das palavras para as ações – na vida coletiva? Trata-se de tarefa difícil.
Em primeiro lugar, pela necessidade de coerência, praticamente inexistente do ponto de vista das práticas do atual desgoverno brasileiro, por exemplo.
Vivemos um golpe de estado que defende o estado mínimo para a imensa maioria da população, mas máximo para os altos escalões dos três poderes, inclusive os militares.
Um simples passeio pela zona militar de Porto Alegre pode ser elucidativo: vemos policlínicas de saúde e odontológicas exclusivas; poupanças especiais e hotéis de trânsito só para os fardados.
Mas não são eles que defendem o estado mínimo? Para os outros, evidentemente. Coerência zero deveria ser o lema do desgoverno dos milicianos, como Fome Zero foi dos governos do presidente Lula.
Idem para os salários aumentados às alturas e o regime previdenciário exclusivo, que lhes garantiu aposentadoria integral, sem limite de idade mínima, ao contrário dos civis.
Pela regra da amorosidade, não deveriam ser eles os últimos e não os primeiros? Não dizia o próprio Cristo que quem quiser ser o primeiro que seja o último?
Pelo menos, não deveriam exercer a solidariedade, a coerência, e manter regime equânime com os civis? Fica evidenciado que a coerência não é valor, pois o lema do desgoverno que sustentam é:
“Deus acima de tudo”.
Qual Deus? O deus dinheiro, que exclui o verdadeiro Deus? Só pode ser, uma vez que as escrituras estabelecem que não se pode servir aos dois senhores.
No entanto, poderíamos pensar: fazem isso por não conhecerem um estado mínimo. Nunca foram ao Haiti.
Mas teríamos de nos confrontar com a verdade: muitos deles não apenas conhecem o Haiti, mas também viveram lá. Portanto, sabem dos horrores de um estado mínimo em que as construções não são fiscalizadas, como se viu no terremoto de 2010, que vitimou soldados e civis das forças de paz da ONU, além de milhares de haitianos, principalmente pobres; sabem que no Haiti não há sequer uma estação de tratamento de água, apesar de 500 anos de invasões da França e dos EUA; que, por essa razão, um litro de água custa lá mais do que um litro de coca-cola; que, no país, apenas um milhão dos dois milhões e duzentos mil estudantes conta com alguma alimentação escolar, para muitos deles, a única refeição diária.
No Judiciário e no Legislativo, vemos as mesmas férias de 60 dias ao ano, quando a maioria da população já não distingue mais domingo de segunda, trabalhando os 7 dias da semana.
Tudo se justifica pela “meritocracia”, uma falácia em um país que registra a maior desigualdade socioeconômica do mundo, a qual,só fez crescer sob os dois últimos desgovernos.
Se pensarmos que coerência e justiça são indissociáveis, como aceitar que parte do próprio poder judiciário compactue com essa situação de profunda injustiça?
Só a organização dos próprios excluídos poderá levar à libertação: conquistar o poder por meio da organização e do sufrágio, formando e assim transformando a violenta realidade em que vive a grande maioria da população brasileira.
Para isso, é necessário entender o golpe de 2016, a gênese dele, o papel das forças imperialistas (EUA e OCDE em primeiro lugar) e formar o povo na identificação daqueles que internamente são aliados da dominação imperialista: os meios de comunicação hegemônicos e os estamentos do estado que atuam como capitães do mato, entre outros, para encontrar formas de diálogo com os setores populares, explorados e manipulados pelas forças da incoerência e da injustiça.
Ao lado disso, caberá propor formas inovadoras de participação popular, em todos os domínios da democracia e interessar a população por política externa, contribuindo para a formação de consciência crítica da construção estratégica de uma nação e dos riscos de desconstrução que presenciamos atualmente no país, como o fim da indústria da construção civil de grande escala, obra da Lava Jato; da indústria aeronáutica, com a alienação da Embraer para a falida Boeing; da indústria naval, com o fim das compras de componentes nacionais para a indústria petrolífera etc.
Em meio ao caos gerado pelo golpe de estado e pelos governos ilegítimos que se sucederam, o positivo é que não resta alternativa ao balanço de logros e fracassos – diagnóstico – para que se possa aprofundar a inteligência popular sobre a realidade que nos circunda, gerando prognóstico.
De fato, se a etimologia de “inteligência” remete-nos ao “inter-leggere” latino (ler dentro, em profundidade), no caso dos países, das nações, devemos privilegiar também a outra acepção possível de “inter”: entre, em relação, em conexão.
Dessa forma, lemos a natureza, a humanidade, a justiça e a paz: em renascimento, em ação e salvação.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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