Sociedade

Autogestão na habitação como política de Estado

Agora São Paulo terá uma estrutura legal para balizar uma alternativa ao domínio das empreiteiras

Autogestão na habitação como política de Estado
Autogestão na habitação como política de Estado
Apoie Siga-nos no

A aprovação do projeto de lei que regulamenta a autogestão na moradia, de minha autoria é conquista histórica. Fica, finalmente, garantida a necessária institucionalidade para um programa de produção e gestão habitacional que, desde os anos 1980, vem sendo implementado em São Paulo, com excelentes resultados, mas sofrendo solavancos pela falta de continuidade administrativa. Uma revisão histórica é necessária para entender a importância da aprovação dessa nova lei.

Para muitos, a década de 1980 foi perdida. Para mim, ao contrário, esse foi um tempo de esperança e de utopias. Vivíamos em um regime autoritário e em meio a uma grave crise econômica e política, mas o clima – ao contrário de hoje – era de euforia e entusiasmo com um horizonte de democracia e da possibilidade de inovação nas políticas públicas.

Na área da habitação, onde atuava com tanta intensidade, o horizonte era promissor. Enquanto o BNH, um dos principais símbolos da ditadura militar, estava em crise, os movimentos de moradia, com a assessoria de técnicos militantes e ativistas, formularam alternativas capazes de produzir habitações de baixo custo e com excelente qualidade, com participação popular.  

Ao mesmo tempo em que a sociedade tomava as praças com sonhos de liberdade e de eleições diretas, terras ociosas eram ocupadas pelos movimentos para enfrentar a grave carência de moradias. Novos atores entraram em cena. Às lideranças populares, muitas integrantes das Comunidades Eclesiais de Base, que tinham pé e fé na caminhada, juntaram-se professores e estudantes universitários, profissionais progressistas e intelectuais.

Nesse ambiente, participei da criação do Laboratório de Habitação, que atuou intensamente na formulação dos primeiros projetos habitacionais baseados no mutirão e na autogestão, testados inicialmente em pequenos empreendimentos apoiados timidamente e com muita desconfiança pelas administrações públicas.

Outras experiências pioneiras surgiram nesses anos, contribuindo para formulação de um modelo de gestão que resiste há décadas, confrontando o convencional e privilegiando a ajuda mútua, a forma coletiva de repartir o solo urbano, o protagonismo dos mais pobres na solução de seus problemas e a forma não lucrativa de produção habitacional.

A mais exemplar dessas iniciativas foi o programa de mutirões da cidade de São Paulo, realizado na administração Luiza Erundina (1989-1992), que tive a possibilidade de dirigir como Superintendente de Habitação Popular (HABI-Funaps), reconhecido como prática exitosa e levado pela delegação brasileira à conferência mundial de habitação da ONU, em 1996.

Cidades grandes, médias e pequenas desenvolveram ações locais e milhares de famílias conquistaram o direito de viver com dignidade, construindo suas casas, participando da urbanização das favelas, lutando pela regularização dos loteamentos, enfim buscando se tornar sujeitos de seu próprio destino.

A qualidade dos projetos, seu baixo custo e o fato de se tornarem experiências reconhecidas não garantiram, no entanto, a continuidade de projetos. Governos locais conservadores e comprometidos com empreiteiras interromperam obras e projetos, perseguiram lideranças populares, tentaram contestar as vantagens do programa e amplificar seus defeitos, ao invés de corrigi-los. Paulo Maluf, por exemplo, paralisou dezenas de conjuntos habitacionais que estavam em construção quando assumiu em São Paulo, em 1993.

Mesmo com tropeços, ocorreram avanços conceituais. O mutirão tradicional, caracterizado pelo trabalho em finais de semana, evoluiu para a compreensão de que a gestão participativa dos recursos deveria ser priorizada. A autogestão continuou a disputar espaço na política habitacional e, além de resistir em âmbito municipal e estadual, conquistou, a nível federal, programas, como o Crédito Solidário, posteriormente substituído pelo Minha Casa Minha Vida Entidades.

Embora de menor dimensão em relação à produção convencional, não é desprezível o que se fez nesses últimos anos de forma autogestionária, atingindo mais de 100 mil unidades. Mas, a cada mudança de governo, novas ameaças são lançadas em relação ao direito das associações comunitárias desenvolverem novos projetos.

A falta de continuidade é visível, atualmente, no plano federal, com o cancelamento de novas contratações no Programa MCMVEntidades, redução dos recursos disponíveis, alteração das regras em favor de construtoras, medidas que são feitas, depois desfeitas e depois refeitas, mostrando que a autogestão na moradia, novamente, viverá tempos difíceis.

Daí a importância da aprovação da Lei Municipal da Autogestão na Moradia, formulada com a contribuição dos movimentos de moradia e técnicos que se dedicam ao tema. Com ela, é reconhecido o papel dos atores que atuam no programa, estabelecida uma política de terras e de destinação permanente de recursos, definido o processo público de escolha das entidades e das famílias que deverão ser atendidas e fixadas as diretrizes para garantir a qualidade dos projetos, a participação das famílias, a autonomia do trabalho técnico social, a inserção dos conjuntos na cidade e sustentabilidade urbana e ambiental.

A experiência da autogestão na produção de moradias mostra que, nas periferias, sobra capacidade de propor soluções inteligentes, disposição para o trabalho cooperativo e para o exercício de uma democracia participativa. 

Com a sanção da lei, Fernando Haddad concluirá sua gestão tendo transformado a experiência da autogestão em habitação como uma política de Estado. Na atual conjuntura de crise fiscal, esse programa de parceria entre a prefeitura e entidades comunitárias é a melhor alternativa para fazer mais com menos. Por isso, esperamos que o novo governo entenda a potencialidade do programa e não só dê continuidade ao que está em andamento como amplie sua dimensão. 

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo