

Opinião
O Brasil entrega-se ao faz de conta e comprova a demência geral
Vivemos uma ficção, um espantoso conto, sem a mais pálida semelhança com a verdade factual, de resto ignorada pela mídia


Quem pretendesse assistir pela ESPN às partidas do recente torneio de tênis de Paris, nos intervalos teria de padecer dois gêneros de anúncios. Primeiro veria cenas devastadoras de uma luta chamada MMA, que traz à memória os embates dos gladiadores da antiga Roma apresentados como esporte normal, se não mesmo olímpico, em seguida de apartamentos erguidos em bairros ricos de São Paulo, de dimensões extraordinárias, garagens infinitas e até terraços gourmets. Estes, confesso a minha ignorância, de serventia insondável. Nada mais representativo do país hodierno do que este conjunto que a publicidade celebra a bem de quantos apreciariam ver em ação Federer ou Djokovic.
De fato, neste momento se verifica um crescimento na área imobiliária paulistana a justificar uma precipitada esperança em relação ao futuro da economia do país de Bolsonaro e Guedes. Quanto à luta insana, ela tem certamente o mérito de estimular o prazer pela violência alimentado por um povo que a sofre, se for o caso, em absoluto silêncio. Não é por acaso que o Brasil produziu campeões mundiais em tortura, sem detrimento da implacável consideração em relação à natureza do torturador: um covarde na acepção inexorável. A consequência de tais tendências, humores, vocações exprime-se na situação atual que o País atravessa, entregue à demência daqueles que o próprio povo levou ao comando.
Os últimos capítulos deste enredo exibem um filho do presidente da República sequioso por reeditar o AI-5, ou o próprio chefe supremo que pratica o delito de obstrução de Justiça para retirar provas do seu eventual envolvimento no caso Marielle. Nisso tudo avultam a apatia, o descaso, a incapacidade de reação do povo brasileiro e a tibieza condescendente da dita classe média, na verdade a porção rica no País mais desigual do mundo, uma exígua minoria que faz o que bem entende com a proteção do poder. No fundo estou aqui a me repetir, mas há pouquíssimo a acrescentar na descrição deste impiedoso espetáculo do faz de conta nativo. Vivemos uma ficção, um espantoso conto, sem a mais pálida semelhança com a verdade factual, de resto ignorada pela mídia. No contexto insere-se, aí sim, com perfeita aderência, a invasão das nossas costas pelo misterioso fluxo do petróleo, aos poucos a nos envolver qual fosse uma vingança do destino, ao mesmo tempo em que a insanidade governista põe em leilão o pré-sal, nossa garantia e nosso tesouro. Diante da inércia impune do País em peso, sem contar a conivência habitual dos próprios poderes da República.
A perspectiva das eleições de 2022, já largamente comentada, expõe esta inaceitável pretensão de normalidade, como se não estivessem em xeque todos os desenvolvimentos da situação provocados desde 2014 pela Lava Jato inicialmente e do golpe urdido contra Lula e contra o PT. Tudo o que se seguiu é invalidado de uma forma mais do que clara à luz da razão, da moral e da própria lei que o nosso supremo tribunal enxovalhou e enxovalha.
Candidaturas surgem ao sabor desta normalidade de pura fábula, entre elas aquela do representante do tucanato velho de guerra, o mesmo que, quando da Presidência de Fernando Henrique Cardoso, de forma admirável, cuidou dos interesses da minoria rica.
Permito-me dizer que, se a classe média calçasse as botas da Wehrmacht, o ruído da sua marcha superaria aquele do exército de Hitler.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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