Política

Roraima: crônica de um massacre anunciado

Desde outubro, o Ministério da Justiça tinha ciência do barril de pólvora instalado no presídio de Monte Cristo, revela relatório do próprio governo

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Cinco dias após o massacre de 56 presos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, a Região Amazônica protagonizou uma nova barbárie. Ao menos 33 homens sob custódia do Estado na Penitenciária Agrícola Monte Cristo, em Boa Vista, foram assassinados na madrugada de 6 de janeiro.

Os detentos responsáveis pela carnificina simplesmente quebraram os cadeados dos portões que os dividiam de seus alvos e iniciaram a matança. As atrozes cenas de decapitações registradas em celulares dos algozes não tardaram a se alastrar pelo WhatsApp e pela internet.

No mesmo dia, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, apressou-se a atribuir a chacina a um “acerto de contas interno” do Primeiro Comando da Capital (PCC), organização criminosa gestada nos presídios paulistas que, ante a inércia estatal, expandiu-se para todas as unidades da federação. O ministro negou que a situação do presídio roraimense tenha “saído do controle”, mas admitiu se tratar de uma “situação difícil”.

De fato, não faz sentido falar de perda de controle de uma situação descontrolada há longa data. Lamentavelmente, o massacre não surpreendeu os organismos internacionais e ONGs de direitos humanos que monitoram o sistema carcerário.

Palco de uma chacina que resultou em 10 presos mortos em outubro de 2016, Monte Cristo não está sob controle há tempos, como mostra um documento produzido pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), vinculado ao Ministério da Justiça (confira a íntegra do relatório ao fim do texto). Quatro dias após a chacina de outubro, representantes do órgão federal se deslocaram para Boa Vista para inspecionar a penitenciária. Só conseguiram entrar com a intervenção de 30 homens do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar, “com equipamento completo, incluindo capacete, balaclava, arma curta e arma longa”.

Imbuídos de fazer a vistoria, os servidores Pablo Moreira de Carvalho e Letícia Maranhão Matos explicam a razão de recorrer a tal aparato: “Esta varredura preliminar se justificava porque os presos eram hábeis em abrir os cadeados e, assim, circulavam livremente por uma vasta extensão de área da unidade, podendo ocultar-se nos numerosos prédios inacabados ou semidestruídos espalhados pelas cercanias dos pavilhões”.

No documento, a chacina de outubro é atribuída ao PCC, que teria ordenado aos seus soldados no presídio o assassinato de rivais do Comando Vermelho, facção nascida no Rio de Janeiro. Conforme o relato de agentes penitenciários, registrado no relatório do Depen, integrantes da organização criminosa paulista, “com os restos de uma coluna de sustentação de concreto armado obtida entre os escombros que se acham nos limites internos da unidade e utilizada como aríete, abriram em poucos minutos três ou quatro passagens nas paredes que limitavam o pavilhão e, em seguida nos muros que os separavam do pavilhão ocupado pelo ‘Comando Vermelho’ durante a visita de familiares”.

O relatório da visita destaca, ainda, as “péssimas estruturas físicas, gestão prisional inexistente, servidores não capacitados e total ausência de mecanismos e metodologias que oportunizem a recuperação das pessoas privadas de liberdade”. A situação era tão caótica que o Tribunal de Justiça de Roraima decidiu solicitar ao Exército a doação de “tendas” destinadas à “substituição dos barracos que hoje integram um conjunto sugestivamente denominado de ‘favelinha’”.

Entre as fotografias da inspeção, figura um barraco improvisado com embalagens de marmitex. Ele já existia em outubro, e continuava a abrigar presos até o recente massacre de 33 presos ocorrido na primeira semana de janeiro, como provam imagens captadas por agências de notícias. Possivelmente, nada mudou.

Em lacônico despacho assinado digitalmente em 17 de novembro de 2016, Marco Antônio Severo Silva, diretor-geral do Depen, manifestou “ciência quanto ao teor” do documento, e ordenou a restituição do processo à Diretoria de Políticas Penitenciárias para “monitoramento da matéria”. Segundo a assessoria de imprensa do órgão federal, não havia previsão normativa de intervenção do Depen na rotina das unidades penitenciárias dos estados à época da elaboração do relatório.

“Essa previsão só passou a existir a partir do decreto assinado pelo presidente Michel Temer em 17 de janeiro de 2017”, diz a nota. A resposta lista medidas tomadas pela União, como a transferência de presos para prisões federais, envio de equipamentos de raio-x e detectores de metal usados nos jogos olímpicos às unidades prisionais do estado, bem como o repasse a Roraima de 44 milhões de reais do Fundo Penitenciário Nacional.

Um episódio recente evidencia, porém, o descaso do governo Temer  ante a tragédia anunciada. Em 21 de novembro, Suely Campos, governadora de Roraima, solicitou apoio da Força Nacional para atuar nos presídios do estado em ofício encaminhado ao ministro da Justiça. E denunciou o ocorrido após a morte dos 33 presos de Monte Cristo. Inicialmente, o tucano negou ter recebido tal pedido, mas a farsa não durou muito. “Apesar da importância do pedido de Vossa Excelência, infelizmente, por ora, não podemos atender ao seu pleito”, escreveu Moraes em documento divulgado pelo jornal O Globo.

O advogado Rafael Custódio, coordenador do programa de justiça da ONG Conectas, entidade que costuma monitorar a situação dos presídios, afirma que há uma tendência das autoridades em negligenciar os relatórios de visita. “Muitos acham que maus-tratos e violência nas cadeias são normais por se tratar de cidadãos de ‘segunda-classe’, como se não houvesse urgência. Os integrantes do Judiciário, do Ministério Público e do Executivo muitas vezes são parte do problema”.

Detalhe: O Brasil já havia recebido uma reprimenda da Comissão Interamericana de Direitos Humanos por conta uma chacina anterior ocorrida em Monte Cristo, em 16 de outubro do ano passado, quando 10 presos foram assassinados. “Os Estados, como avalistas dos direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade, têm o dever jurídico ineludível de adotar ações concretas para garantir os direitos à vida, integridade pessoal e segurança dos detentos”, disse a entidade, ligada à Organização dos Estados Americanos.

Confira o relatório do Depen de outubro passado:

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