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No olho mecânico

Dividida entre dois projetos opostos, a Argentina decidirá no voto a voto seu futuro

Massa depenou Milei no debate. Fará diferença? – Imagem: Luis Robayo/Pool/AFP
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Os surpreendentes resultados tanto das eleições primárias, em agosto, quanto do primeiro turno das eleições argentinas, em outubro, abriram uma série de interrogações em relação aos principais atores políticos no país. De um lado, a coalizão de centro-direita conhecida como ­Cambiemos, que elegeu Mauricio Macri para a Presidência em 2015, foi certamente a principal derrotada, nas primárias e no primeiro turno. Macri apostou na candidata com menos viabilidade, Patricia Bullrich, derrotada no primeiro turno, tirando do jogo político o candidato centrista que tinha mais capacidade de enfrentar Javier Milei. Ao mesmo tempo, ele movimentou-se em direção a Milei e, com isso, dividiu seu partido ao perder apoio tanto de integrantes da União Cívica Radical como de mais moderados, caso de Horacio Larreta, que disputou com ­Bullrich a indicação da coalizão para a eleição.

Os peronistas mostraram uma enorme resiliência e capacidade de recuperação e confirmaram o motivo pelo qual são a espinha dorsal da política argentina. Sergio Massa, depois de praticamente ficar de fora da disputa pelo primeiro turno e ser o primeiro candidato peronista desde a redemocratização a ter menos de 30% dos votos em uma eleição primária, conseguiu uma recuperação surpreendente e passou para o segundo turno como candidato mais votado do país, à frente de ­Milei. O próprio fato de Massa ser o ministro da Economia em um governo cuja situação econômica é desastrosa impõe, no entanto, uma série de impasses ao seu desempenho no segundo turno.

Milei conseguiu o feito de não avançar nenhum ponto entre sua performance absolutamente excepcional nas eleições primárias e sua performance decepcionante no primeiro turno. Mas, com o apoio recebido de Bullrich e Macri, chega ao segundo turno posicionado para disputar a eleição no voto a voto, como parece ser o que ocorrerá no próximo domingo.

As quatro semanas que separam o primeiro do segundo turno eleitoral não bastaram para dissipar o horizonte turvo que a Argentina descortinou em outubro. Desta vez, a incerteza no cenário é sustentada por três fatores. O primeiro é a dificuldade que pesquisas de opinião pública enfrentam para retratar e mensurar o desejo dos argentinos. Assim como ocorreu nas eleições primárias e no primeiro turno, as pesquisas divergem ao capturar as preferências do eleitor. Grande parte sinaliza que o nome do próximo presidente argentino está no que conhecemos aqui como margem de erro: alguns institutos indicam Milei numericamente à frente na disputa, outros têm Massa como líder, mas identificar um eventual vencedor é um desafio estatisticamente arriscado.

As pesquisas não conseguiram captar as reais intenções do eleitorado. A incerteza prevalece

A pesquisa Celag, feita presencialmente com 2.005 eleitores entre 25 de outubro e 8 de novembro, coloca Massa numericamente à frente da disputa, com 50,8% das preferências contra 49,2% de Milei, considerando-se apenas os votos válidos. A margem de erro da pesquisa é de até 2,2 pontos porcentuais. Um dado destaca-se, porém: ao serem questionados sobre quem acham que vencerá a disputa, os argentinos apontam Massa com folgada margem. Já o levantamento feito no início do mês pela consultoria AtlasIntel por meio digital indica empate técnico entre os candidatos no limite da margem de erro, de 2 pontos porcentuais. Neste caso, Milei lidera com 52% das intenções de votos válidos.

Entre os jovens de até 24 anos, Milei atinge espantosos 61% das intenções de voto e é maioria nas preferências do eleitorado masculino. Quando se olha para o total dos eleitores – ou seja, considerando-se também os votos brancos, nulos e indecisos –, Milei tem o apoio de 48,5% dos eleitores, mas apenas 38,4% dos argentinos acreditam que ele cumprirá a promessa de dolarizar o sistema monetário, uma de suas principais bandeiras. Outros 30% afirmaram não saber avaliar se essa é uma proposta que pode ser levada a cabo.

Um segundo pilar nesse cenário é sobre quem deve, de fato, comparecer às urnas no próximo domingo. Com 77% de participação do eleitorado, a taxa de abstenção bateu recorde histórico no primeiro turno, apesar de subir 7 pontos porcentuais em relação às primárias. Quase um quarto preferiu se eximir de escolher entre o candidato governista de um país enredado em uma longa crise econômica, um outsider de extrema-direita que se construiu sobre um discurso antipolítica e uma candidata que não soube tirar proveito das fraquezas de seus dois principais adversários. Em uma disputa tão acirrada, qualquer oscilação neste índice pode ser o elemento definidor. Segundo a ­AtlasIntel, dos eleitores que declararam não ter votado ou que invalidaram o voto no primeiro turno, 32% pretendem agora votar em Milei e outros 22% preferem Massa. E cerca de um quarto dos eleitores de Bullrich, principal derrotada do primeiro turno, decidiram não votar em ninguém.

E aqui entra em jogo o terceiro ponto. Em busca dos eleitores indecisos, os dois candidatos se enfrentaram, no domingo 12, em um debate ao vivo, dando início à semana decisiva para a Argentina. Um Milei menos despenteado e mais acuado duelou com um ministro da Economia treinado para emparedar seu rival. A audiência do evento, promovido pela Justiça Eleitoral, atingiu 47 pontos, sem considerar as transmissões via streaming, e, segundo a mídia local, atraiu mais espectadores do que a final da Libertadores entre Boca Juniors e Fluminense. Sem pesquisas de opinião que possam captar o eventual impacto do debate nas preferências dos argentinos, entretanto, o bom desempenho de Massa serve agora para alimentar expectativas.

Quarenta anos depois da eleição que marcou o retorno do sistema democrático à Argentina, dois projetos opostos colocam o regime à prova. Só Massa oferece as garantias necessárias para impedir que retrocessos democráticos, oportunisticamente justificados pelo desespero socioeconômico, tomem o país de assalto. E em uma Argentina dividida, cada voto importa. •


*Leonardo Avritzer é professor titular de Ciência Política da UFMG, doutor em Sociologia Política pela New School for Social Research e coordenador do INCT-IDDC.

*Andressa Rovani é jornalista e doutoranda em Ciência Política pela Unicamp.

O Observatório das Eleições na Argentina é um projeto internacional do Instituto da Democracia, sediado na UFMG e coordenado por Leonardo Avritzer. Envolve uma equipe de pesquisadores de diversas instituições e universidades, no Brasil e na Argentina, e tem como objetivo central acompanhar as eleições presidenciais no país vizinho

Publicado na edição n° 1286 de CartaCapital, em 22 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘No olho mecânico’

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