Sociedade

Políticas municipais e encarceramento: é preciso mudar a abordagem

As campanhas eleitorais têm mostrado como prender mais é uma opção política que ainda parece impassível de qualquer questionamento

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Para quem vive nas grandes cidades, e em especial nas periferias ou áreas centrais, torna-se cada vez mais comum ver a principal política dos municípios para lidar com as pessoas negras, pobres, e moradoras da periferia, sempre sob suspeita: abordagens violentas e seletivas de policiais militares e, mais recentemente, guardas civis metropolitanos, que muitas vezes resultam em prisões. Aos olhos de quem vive na cidade, essas pessoas e o tratamento torturante a elas dispensado no cárcere, acabam se tornando invisíveis.

Uma das facetas desta invisibilização se reflete também nos debates eleitorais municipais que têm sido feitos pelas candidatas e candidatos que disputam as maiores prefeituras do país, cujas principais propostas políticas tendem a tornar o cenário de prisões e abordagens policiais nas ruas da cidade ainda mais frequente.

O caráter estruturalmente violador de direitos humanos da prisão tem feito com que há alguns anos diversas organizações da sociedade civil e organismos internacionais, tenham passado a exigir que o Brasil adote medidas que reduzam o número de pessoas presas no país, bem como retirem a centralidade da prisão como mecanismo de solução de conflitos.

Nesse sentido, recentemente, algumas políticas que têm o potencial de reduzir o encarceramento foram adotadas, como as audiências de custódia, a expansão das hipóteses legais que autorizam mulheres a não ficarem em prisão provisória e o investimento do governo federal em estruturas voltadas à aplicação de penas alternativas à prisão.

Apesar da eficiência dessas políticas de desencarceramento dependerem, dentre outros fatores, de uma articulação às políticas municipais  sobretudo de saúde, trabalho, educação e assistência social  que criam condições para que as pessoas consigam cumprir as penas ou medidas cautelares, não se tem visto nos debates eleitorais municipais nenhuma menção a esses temas de justiça criminal.

Na verdade, quase não se fala em presos ou prisões nos programas das principais candidaturas, como se as condições degradantes de estabelecimentos prisionais superlotados nas cidades e as milhares de pessoas que são marcadas pelo sistema penal diariamente nada tivessem a ver com o município.

Com efeito, os debates eleitorais têm revelado que não só existe uma profunda negligência dos municípios em relação à política de encarceramento, mas também que a opção dos candidatos  aproveitando-se de uma abordagem midiática que faz com que a segurança pública pareça ser a principal preocupação dos eleitores  tem sido com propostas que aumentam a atuação repressiva no território da cidade, materializada na  principal proposta comum de seus programas: o fortalecimento do braço policial do município, as guardas municipais.

A atuação policialesca das guardas municipais já é uma realidade na maioria das grandes cidades brasileiras. Na cidade de São Paulo, abordagens e revistas de determinados moradores, prisões, expulsão e eliminação dos pertences de moradores de rua e até mesmo a responsabilidade por mortes de pessoas consideradas suspeitas demonstra como já há uma aproximação completa da atuação policial

Ainda assim, as campanhas têm mostrado como prender mais e tornar a realidade por trás do cárcere ainda mais invisível é uma opção política que ainda parece impassível de qualquer questionamento.

Propostas encarcerados dos candidatos e das candidatas à Prefeitura

Na disputa do primeiro turno em São Paulo, as principais propostas dos candidatos giravam em torno de uma valorização da Guarda Civil Municipal e sua integração com a Polícia Militar para uma atuação mais eficiente, o que certamente tem como consequência mais prisões.

No último debate eleitoral da TV Globo para o 1º turno, os candidatos que estavam à frente nas pesquisas lançaram sua artilharia para um discurso explicitamente punitivista. Na esteira do prefeito eleito, João Doria, defenderam uma política higienista de limpeza do centro, pautada pela repressão aos pequenos delitos, de vândalos e pichadores, se aproximando de um exemplo de política municipal encarceradora  a Tolerância Zero adotada em Nova York nos anos 90 pelo então Prefeito Rudolph Giuliani.

Esta política apenas contribuiu para uma limpeza higienista de parte da cidade e é creditada como uma das responsáveis por aumentar os índices de encarceramento nos Estados Unidos.

Os programas dos candidatos de outras capitais que disputam o 2º turno parecem ir no mesmo sentido. Um exemplo é Belo Horizonte.

Na disputa pela Prefeitura da capital mineira, tanto o candidato João Leite (PSDB) quanto Alexandre Kalil (PSH) falam na necessidade de aperfeiçoar a parceria das GCMs com a polícia, citando inclusive a necessidade de mais armamentos para a Guarda, explicitando como essa valorização geraria uma política altamente repressiva.

Ainda, defendem uma atuação conjunta dos órgãos de segurança em “áreas quentes”, em que a criminalidade seria maior, mostrando como a atuação territorializada na cidade tende a priorizar um caminho que apenas gerará mais encarceramento.

O candidato Alexandre Kalil defende a criação de uma Secretaria de Prevenção Social da Violência e traz em seu programa a relevância do aumento da guarda nos municípios, sustentando ainda a necessidade de aprovação da PEC 534, que confere constitucionalmente um papel de polícia às guardas. 

No entanto, cabe observar que essa mudança já foi trazida pela Lei 13.022/2014, a qual tem tido a sua constitucionalidade questionada. O videomonitoramento, a restrição de ambulantes e uma política “antidrogas” de fortalecimento das comunidades terapêuticas também são propostas dos candidatos.

Caminhos para repensar a justiça criminal na cidade

A despeito de a maioria das candidaturas de partidos tidos como progressistas, seja no primeiro ou segundo turno, ignorarem a questão das pessoas presas ou marcadas pelo sistema penal na cidade, é possível perceber algumas tímidas propostas sugerindo uma mudança na abordagem eminentemente repressiva.

Em Aracaju, o candidato Edvaldo Nogueira (PCdoB), que disputa o segundo turno, esboça uma outra perspectiva de atuação das guardas municipais ao defender sua formação em mediação de conflitos e o apoio a políticas de redução de danos.

Além disso, abordando especificamente a população egressa do sistema prisional, majoritariamente ignorada em outros programas, propõe uma parceria com o Conselho Comunitário da Execução Penal (CCEP) para apoiar a “ressocialização de apenados e egressos, sobretudo fomentando a reinserção no mercado de trabalho, visando combater a reincidência criminal”.

Ainda, diferentemente de outros candidatos, inclui os familiares de presos como grupo de vulnerabilidade que deveria ser atendido por equipe volante para cadastro único em programas do Governo Federal, pautando a necessidade de políticas sociais para eles.

O candidato adversário Valadares Filho (PSB) traz maior visibilidade à defesa de integração das guardas e polícias, mas aponta um caminho que poderia trazer a redução do uso do sistema penal como principal forma de solução dos conflitos ao defender a formação de núcleos de mediação de conflitos nas comunidades.

Em Recife, o candidato Geraldo Julio (PSB) defende a criação pelo município de Centros Comunitários da Paz, um serviço municipal que tem atividades de lazer e educação e fornece diferentes serviços e atendimentos sociais, estando dentre eles a possibilidade de mediação de conflitos.

No Rio de Janeiro, o programa do candidato à Prefeitura Marcelo Freixo (PSOL), parece ser o que mais destoa deste debate ao dizer expressamente que “segurança pública não é sinônimo de polícia nem de prisão”, e lança luz também a uma perspectiva de atuação do município com outra abordagem, com a criação de “Centros de Mediação de Conflitos voltados para a elaboração de métodos coletivos de soluções não penais para a resolução dos conflitos urbanos em todas as regiões administrativas da cidade”.

Além disso, defende algumas políticas específicas como um genérico “programa municipal para garantir o acesso à justiça e a mecanismos de reinserção social de egressos do sistema prisional”, programas de emprego e renda para quem passar pelo sistema penitenciário ou socioeducativo e a gratuidade no transporte para familiares de presos e cursos profissionalizantes, dando visibilidade a uma parcela da população significativamente atingida pelas medidas encarceradoras, para a qual também deveria se voltar um olhar inclusivo do município, propiciando maior acesso aos serviços públicos.

Município e invisibilização dos alvos do sistema penal

A quantidade crescente de pessoas presas diariamente nas cidades  que as propostas da maioria dos candidatos e candidatas parece querer aumentar  significa que a cada dia mais e mais pessoas demandam políticas que reduzam o estigma da passagem pelo sistema de justiça criminal, o qual dificulta o acesso à renda e emprego, e ainda reforça o ciclo da seletividade penal, posto que as pessoas que têm passagem ficam mais suscetíveis a novas abordagens policiais.

Para além dos debates eleitoreiros que têm sido vistos no primeiro e segundo turno, é importante que as eleições abram espaço para que as cidades comecem a pensar num rompimento com o paradigma de justiça como segurança pública ostensiva, que apenas contribui para aumentar a quantidade de pessoas presas, e pautar a necessidade de o município se engajar na execução de medidas que promovam o desencarceramento.

Isso significa se articular para promover políticas específicas para os que são capturados pelas polícias e são alvos do sistema criminal, de acesso à políticas de saúde, trabalho, educação e assistência social.

Os municípios precisam entender a prisão como instituição estruturalmente violadora de direitos humanos, que apenas agrava desigualdades sociais e dificuldades de acesso à cidade que normalmente já existiam.

Sem uma atuação concreta para reverter esse cenário e lidar com os seus impactos, dentro ou fora do cárcere, os selecionados pelo sistema penal  pessoas negras, pobres e da periferia  continuarão às margens da cidade, sendo destinadas a eles, em um ciclo vicioso, apenas políticas de repressão e controle.

*Nina Cappello Marcondes é advogada e pesquisadora do Programa Justiça Sem Muros do Instituto Terra Trabalho e Cidadania. Raquel da Cruz Lima é advogada e coordenadora do mesmo programa.

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