Política

Muito além da Bahia

Sindicalismo policial, monopólio da força, radicalismo, muito efetivo, pouca eficiência, estado de sítio: os elementos da crise de segurança no País

Cerca de 2,6 mil soldados do Exército fazem a segurança nas ruas de Salvador durante greve da Polícia Militar, que se espalhou para o Rio de Janeiro. Foto: Carla Ornelas/Governo da Bahia
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Em pouco mais de uma semana de mobilização, a crise da Segurança Pública na Bahia colocou policiais estaduais contra forças federais, cercou o coração do sistema político local (a Assembleia Legislativa), levou insegurança às ruas e, sobretudo, mais do que dobrou as taxas de homicídio da região. São mais de 130 mortos desde o início da paralisação da Polícia Militar.

Quem acompanha a greve dos policiais militares da Bahia, que na quinta-feira 9 completa seu décimo dia com impasse, tem a sensação de que o filme é o mesmo. Mudam-se os nomes, os líderes e a localidade, mas a demanda é sempre igual. De um lado, policiais pedindo valorização. De outro, governantes asfixiados pelos limites orçamentários.

A sensação de deja vu deixa claro que o problema não está no colo apenas das lideranças grevistas ou do governador baiano Jaques Wagner (PT). “Há um componente local: o momento exato em que está acontecendo, às vésperas do Carnaval, e a forma de negociação dos dois lados. Mas o componente geral é evidente: não é a primeira greve policial, porque já tivemos três no Nordeste”, afirma Eduardo Paes Machado, especialista em Segurança Pública e Violência Urbana e Saúde da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Segundo ele, a greve aponta para a discussão sobre o próprio modelo, tamanho e funcionamento da polícia no Brasil.

“Essas greves são um cataclismo. Se fosse medida como um terremoto, teria mais de sete graus (na escala Richter)”, sentencia. “A perda de vidas, de horas trabalhadas, o aumento irreversível da situação de segurança…Tudo se aprofunda. E não é uma sensação de insegurança nova. Na Bahia, é um Estado de sítio interno.”

Segundo ele, a situação só não é pior porque, em meio a tantas baixas, um avanço nos últimos anos minimizou o problema: a intervenção da Força Nacional de Segurança, idealizada pelo governo FHC e criada por Lula, nas recentes crises de segurança pelos estados.

De acordo com o sociólogo Renato Sergio de Lima, secretário-geral do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, para entender a crise atual é necessário buscar explicações desde a elaboração da Constituição, em 1988 – que previa a elaboração de uma lei de regulamentação do funcionamento da segurança no País. A norma jamais saiu da carta de intenções.

Segundo o especialista, o que está em jogo na atual crise na Bahia é um modelo de segurança caro e ao mesmo tempo falido. “É verdade o que dizem os governadores: não há recursos. União, Estados e municípios gastam, anualmente, 48 bilhões de reais em segurança pública. É cerca de 1,36% do PIB, o mesmo que a França. E ainda assim temos taxas altas de violência, de letalidade, temos insegurança e péssimos salários”, resume.

A atual crise é perigosa, segundo ele, porque há chances se alastrar. A demanda é a mesma em outros lugares: melhora salarial. No Rio de Janeiro, Alagoas, Pará, Espírito Santo, Paraná e Rio Grande do Sul, há mobilizações semelhantes às da Bahia e podem resultar em breve em crises da mesma proporção.

E o problema não será resolvido, aponta o sociólogo, enquanto não forem discutidas questões como a estrutura militar e civil do policiamento, a efetividade dos gastos, e as formas como os crimes são esclarecidos. “Ainda temos uma estrutura dos anos 40 do século passado, e que a Constituição de 1988 não resolveu. Está mais do que na hora”.

A discussão, aponta ele, exigirá uma articulação institucional que envolva as várias esferas do poder. “A União pode muito, mas não pode tudo. Os governadores também precisam se sensibilizar.”

Um dos temas a serem discutidos, completa Eduardo Paes Machado, da UFBA, é o próprio tamanho dos efetivos policiais. “Temos um mandato policial exorbitante, hipertrofiado. A PM de São Paulo, por exemplo, tem o tamanho de um exército. A partir de 15 mil (soldados, a corporação) é ingovernável. A Bahia tem 30 mil. Eficiência não é tamanho. É a melhoria do relacionamento da população.” E exemplifica: “Os americanos optaram por um modelo com pequenas forças policiais.”

Um dos desafios da crise atual, diz Sergio de Lima, é a radicalização do próprio movimento, muitas vezes flagrado com armas em punho em manifestações públicas. “Quando reivindicam, eles subvertem a lógica que deveriam preservar. Simbolicamente é grave, e devemos evitar.”

A radicalização, segundo Eduardo Paes Machado, parte de um movimento recente, que ele denomina “sindicalismo policial”. “As PMs eram forças auxiliares das Forças Armadas no Exército, viviam aquarteladas, até por disciplina e hierarquia, e pouco se expressavam. Mas a atmosfera democrática chegou. E, para quem não sabia nada (de mobilização), os policiais aprenderam rápido, queimaram etapas”, analisa.

Um dos momentos lembrados pelo especialista foi uma crise da segurança enfrentada pelo governo da Bahia em 2002. Na época, ele lembra que as lideranças policiais se aproximaram dos sindicatos para aprender a tecnologia de mobilização, as formas de discussão e encaminhamento de propostas. “Eles aprenderam muito. Não sei se foi bom ou ruim, mas aprenderam a se mobilizar. E o governo aprendeu pouco. São capacidades de aprendizagem diferentes.”

O especialista completa: “um detalhe importante é que o Brasil é a sexta economia do mundo, a mobilidade está em todos os lugares e no plano econômico, mas, no plano institucional, e nos elevados índices de violência, ainda estamos aquém. A violência interpessoal vem caindo brutalmente na Europa, nos EUA principalmente, e aqui, apesar de algumas vitórias, a violência ainda é um desafio. Somos uma sociedade violenta. E o grevista reproduz isso. São grevistas dentro de uma sociedade muito violenta e que, neste caso, tem o monopólio do uso da força”.

Neste sentido, a própria discussão da PEC 300, que mobiliza policiais em vários estados por um piso salarial nacional, funciona como pano de fundo de crises locais. Segundo o especialista, pagamentos desiguais entre corporações funcionam como referências que “inspiram e justificam” mobilizações.

“De qualquer modo, fala-se pouco em contrapartida, eficiência, transparência. Vai ter maiores salários? Nada contra. Mas como isso vai redundar em aumento da dedicação do policial?”, questiona.

Em pouco mais de uma semana de mobilização, a crise da Segurança Pública na Bahia colocou policiais estaduais contra forças federais, cercou o coração do sistema político local (a Assembleia Legislativa), levou insegurança às ruas e, sobretudo, mais do que dobrou as taxas de homicídio da região. São mais de 130 mortos desde o início da paralisação da Polícia Militar.

Quem acompanha a greve dos policiais militares da Bahia, que na quinta-feira 9 completa seu décimo dia com impasse, tem a sensação de que o filme é o mesmo. Mudam-se os nomes, os líderes e a localidade, mas a demanda é sempre igual. De um lado, policiais pedindo valorização. De outro, governantes asfixiados pelos limites orçamentários.

A sensação de deja vu deixa claro que o problema não está no colo apenas das lideranças grevistas ou do governador baiano Jaques Wagner (PT). “Há um componente local: o momento exato em que está acontecendo, às vésperas do Carnaval, e a forma de negociação dos dois lados. Mas o componente geral é evidente: não é a primeira greve policial, porque já tivemos três no Nordeste”, afirma Eduardo Paes Machado, especialista em Segurança Pública e Violência Urbana e Saúde da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Segundo ele, a greve aponta para a discussão sobre o próprio modelo, tamanho e funcionamento da polícia no Brasil.

“Essas greves são um cataclismo. Se fosse medida como um terremoto, teria mais de sete graus (na escala Richter)”, sentencia. “A perda de vidas, de horas trabalhadas, o aumento irreversível da situação de segurança…Tudo se aprofunda. E não é uma sensação de insegurança nova. Na Bahia, é um Estado de sítio interno.”

Segundo ele, a situação só não é pior porque, em meio a tantas baixas, um avanço nos últimos anos minimizou o problema: a intervenção da Força Nacional de Segurança, idealizada pelo governo FHC e criada por Lula, nas recentes crises de segurança pelos estados.

De acordo com o sociólogo Renato Sergio de Lima, secretário-geral do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, para entender a crise atual é necessário buscar explicações desde a elaboração da Constituição, em 1988 – que previa a elaboração de uma lei de regulamentação do funcionamento da segurança no País. A norma jamais saiu da carta de intenções.

Segundo o especialista, o que está em jogo na atual crise na Bahia é um modelo de segurança caro e ao mesmo tempo falido. “É verdade o que dizem os governadores: não há recursos. União, Estados e municípios gastam, anualmente, 48 bilhões de reais em segurança pública. É cerca de 1,36% do PIB, o mesmo que a França. E ainda assim temos taxas altas de violência, de letalidade, temos insegurança e péssimos salários”, resume.

A atual crise é perigosa, segundo ele, porque há chances se alastrar. A demanda é a mesma em outros lugares: melhora salarial. No Rio de Janeiro, Alagoas, Pará, Espírito Santo, Paraná e Rio Grande do Sul, há mobilizações semelhantes às da Bahia e podem resultar em breve em crises da mesma proporção.

E o problema não será resolvido, aponta o sociólogo, enquanto não forem discutidas questões como a estrutura militar e civil do policiamento, a efetividade dos gastos, e as formas como os crimes são esclarecidos. “Ainda temos uma estrutura dos anos 40 do século passado, e que a Constituição de 1988 não resolveu. Está mais do que na hora”.

A discussão, aponta ele, exigirá uma articulação institucional que envolva as várias esferas do poder. “A União pode muito, mas não pode tudo. Os governadores também precisam se sensibilizar.”

Um dos temas a serem discutidos, completa Eduardo Paes Machado, da UFBA, é o próprio tamanho dos efetivos policiais. “Temos um mandato policial exorbitante, hipertrofiado. A PM de São Paulo, por exemplo, tem o tamanho de um exército. A partir de 15 mil (soldados, a corporação) é ingovernável. A Bahia tem 30 mil. Eficiência não é tamanho. É a melhoria do relacionamento da população.” E exemplifica: “Os americanos optaram por um modelo com pequenas forças policiais.”

Um dos desafios da crise atual, diz Sergio de Lima, é a radicalização do próprio movimento, muitas vezes flagrado com armas em punho em manifestações públicas. “Quando reivindicam, eles subvertem a lógica que deveriam preservar. Simbolicamente é grave, e devemos evitar.”

A radicalização, segundo Eduardo Paes Machado, parte de um movimento recente, que ele denomina “sindicalismo policial”. “As PMs eram forças auxiliares das Forças Armadas no Exército, viviam aquarteladas, até por disciplina e hierarquia, e pouco se expressavam. Mas a atmosfera democrática chegou. E, para quem não sabia nada (de mobilização), os policiais aprenderam rápido, queimaram etapas”, analisa.

Um dos momentos lembrados pelo especialista foi uma crise da segurança enfrentada pelo governo da Bahia em 2002. Na época, ele lembra que as lideranças policiais se aproximaram dos sindicatos para aprender a tecnologia de mobilização, as formas de discussão e encaminhamento de propostas. “Eles aprenderam muito. Não sei se foi bom ou ruim, mas aprenderam a se mobilizar. E o governo aprendeu pouco. São capacidades de aprendizagem diferentes.”

O especialista completa: “um detalhe importante é que o Brasil é a sexta economia do mundo, a mobilidade está em todos os lugares e no plano econômico, mas, no plano institucional, e nos elevados índices de violência, ainda estamos aquém. A violência interpessoal vem caindo brutalmente na Europa, nos EUA principalmente, e aqui, apesar de algumas vitórias, a violência ainda é um desafio. Somos uma sociedade violenta. E o grevista reproduz isso. São grevistas dentro de uma sociedade muito violenta e que, neste caso, tem o monopólio do uso da força”.

Neste sentido, a própria discussão da PEC 300, que mobiliza policiais em vários estados por um piso salarial nacional, funciona como pano de fundo de crises locais. Segundo o especialista, pagamentos desiguais entre corporações funcionam como referências que “inspiram e justificam” mobilizações.

“De qualquer modo, fala-se pouco em contrapartida, eficiência, transparência. Vai ter maiores salários? Nada contra. Mas como isso vai redundar em aumento da dedicação do policial?”, questiona.

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