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Contrabando de cigarros alimenta a violência islâmica no norte da África

Dirigido por extremistas como Mokhtar Belmokhtar, é um negócio de 1 bilhão de dólares e de baixo risco

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Por Jamie Doward

Durante muitos anos Mokhtar Belmokhtar foi pouco mais que uma nota de rodapé nos relatórios de inteligência que analisavam a crescente presença de grupos islâmicos na África saariana.

O homem cujo Batalhão Assinado em Sangue, inspirado na Al-Qaeda, liderou o ataque à usina de gás In Amenas na Argélia, no qual pelo menos 38 pessoas foram mortas, era considerado uma figura relativamente sem importância no ecossistema político da vasta região. Mas Belmokhtar, que lutou com os mujahedin no Afeganistão e o Grupo Islâmico Armado (GIA) na guerra civil da Argélia antes de se tornar um comandante da Al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQMI), baseada no Mali, era ambicioso.

Em 2013 ele idealizou o sequestro de 32 turistas europeus pelos quais obteve resgate. O dinheiro lhe deu o capital inicial necessário para desenvolver um sofisticado negócio comercial por toda a África saariana, ao longo da antiga rota do sal, de mais de 3 mil quilômetros, usada pelos tuaregues para transportar produtos da costa oeste do continente até Timbuctu, no Mali, e depois ao Níger, antes de chegar ao sul da Argélia, uma porta para o Mediterrâneo.

Mas enquanto os tuaregues ganhavam dinheiro com o comércio de sal, ouro e seda, Belmokhtar, que conseguiu ligações estreitas com os integrantes das tribos através de casamentos com filhas de várias famílias importantes, fez uma fortuna por meio de outra mercadoria: cigarros contrabandeados. Tal era o volume de seu negócio que ele conquistou o apelido de “Mr. Marlboro”.

“Ele não era uma figura importante na AQMI, era muito diferente da Al-Qaeda e de Bin Laden”, disse Morten Bøås, um pesquisador sênior na Universidade de Oslo (Noruega) e editor de African Guerrillas: Raging Against the Machine [Guerrilhas africanas: atacando a máquina]. “Ele é conhecido geralmente como uma das figuras mais pragmáticas, mais interessado em encher os próprios bolsos do que combater pela jihad.”

O papel chave que os cigarros desempenham para facilitar o terrorismo foi inexplicavelmente ignorado. Mas tornou-se um interesse urgente para as agências de inteligência ocidentais que tentam combater as diversas facções da Al-Qaeda atuantes em toda a região do Saara.

De fato, depois de entrevistar diversos agentes e especialistas nesse campo, o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (CIJI) concluiu que “o contrabando de cigarros forneceu o grosso do financiamento da AQMI”. Entre os afiliados da AQMI está o Ansar al-Sharia, acusado do assassinato do embaixador norte-americano Chris Stevens em Benghazi, na Líbia, no ano passado. Também estaria por trás de ameaças feitas na semana passada que levaram o Ministério do Exterior da Grã-Bretanha a pedir que os britânicos deixassem a cidade.

O valor total do comércio ilícito de tabaco no norte da África seria superior a 1 bilhão de dólares. O Escritório da ONU para Drogas e Crime (Unodc na sigla em inglês) estima que os africanos fumam 400 bilhões de cigarros por ano, dos quais 60 bilhões são comprados no mercado negro.

Entretanto, cinco países — Argélia, Egito, Líbia, Marrocos e Tunísia — fumam 44% dos cigarros da África, e seus mercados paralelos são significativamente maiores. Mais de três quartos de todos os cigarros fumados na Líbia, por exemplo, são ilícitos.

Controlar o fluxo de contrabando para esses países provocou uma guerra interna, enquanto Belmokhtar e outras facções da AQMI competem entre si, assim como com tribos tuaregues e autoridades corruptas do exército e do governo, na tentativa de controlar o negócio. Alguns dos cigarros transportados pela África saariana são falsificações produzidas na China e no Vietnã. Mas a maior parte são produtos de marcas genuínas, obtidos através do Oriente Médio e embarcados por diversos países através de uma rede complexa de intermediários e empresas, muitas em paraísos fiscais offshore.

Os cigarros costumam entrar na África ocidental por Gana, Benim e Togo. Uma rota secundária é através da Guiné, onde a oferta, segundo a Unodc, supera amplamente a demanda do país. Os cigarros são então transportados para o Mali por estradas ou por barco no rio Níger, onde há pouco risco de detecção. O terceiro pólo de distribuição — para Senegal, Marrocos e Argélia — é abastecido pela Mauritânia.

Em todos os casos, Mr. Marlboro e a AQMI fazem a limpeza, cobrando um “imposto” para a passagem segura dos cigarros pela rota do sal, ou facilitando seu transporte usando veículos 4×4, caminhonetes, motos e até bicicletas.

Muitas vezes os produtos contrabandeados não são uma marca ocidental de primeira linha, como Marlboro, mas uma das mais baratas e menos prestigiosas que as gigantes do tabaco lançam nos países em desenvolvimento como forma de penetrar em seus mercados.

Inevitavelmente, o contrabando de cigarros endêmico nesses países levantou perguntas sobre o papel desempenhado pelas grandes empresas, e em particular a medida em que elas devem ser responsabilizadas pelas rotas de distribuição serem usadas para encher os cofres de alguns dos grupos terroristas mais perigosos do mundo.

Memorandos internos da empresa mostram que na década de 1980 a British American Tobacco (BTA) na África usou uma empresa baseada em Lichtenstein, a Sorepex, como distribuidor chave. Documentos da BTA  revelam que a companhia via a Sorepex como uma maneira de oferecer “cobertura, embora cada vez mais frágil, para a BAT em alguns negócios bastante obscuros”. A companhia insiste que condena toda forma de contrabando.

Em 2002 a RJ Reynolds, dona da marca Winston, foi acusada pela União Europeia de vender seus produtos no Iraque, rompendo os embargos. Os cigarros eram supostamente contrabandeados para o país pelo PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), considerado um grupo terrorista pelo governo dos Estados Unidos. O documento supostamente revelava que os cigarros eram transportados dos EUA e enviados para a Espanha e depois para Chipre e a Turquia antes de chegarem ao Iraque. O caso está atualmente em um tribunal de apelação federal nos EUA.

Mais recentemente, no ano passado, a Japan Tobacco confirmou que está sendo investigada pela UE sobre alegações de que burlou as sanções enviando cigarros para uma firma ligada ao regime sírio. A companhia negou qualquer infração.

Especialistas dizem que os lucros do contrabando de cigarros alimentam outras atividades criminosas, incluindo o tráfico de drogas, de petróleo e de pessoas, atividades que muitas vezes usam as mesmas redes de distribuição. Mas os cigarros continuam sendo a forma de contrabando mais rentável e menos arriscada. Louise Shelley, especialista em criminalidade na Universidade George Mason em Washington, disse ao CIJI: “Ninguém pensa que o contrabando de cigarros é sério demais, por isso os órgãos policiais não gastam recursos para reprimi-lo”.

Isso ajuda a explicar por que grupos terroristas exploram o comércio ilícito. Segundo o Departamento de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos dos EUA, o IRA ganhou até 100 milhões de dólares entre 1999 e 2004 contrabandeando cigarros para a Irlanda do Norte. O Hizbollah teve uma bem-sucedida operação de contrabando nos EUA, enviando cigarros da Carolina do Norte, onde os impostos são baixos, para Michigan, onde são mais elevados.

“O contrabando de tabaco é lucrativo e generalizado”, disse Deborah Arnott, executiva-chefe da organização Ação sobre o Fumo e a Saúde. “Ele ajuda a financiar o terrorismo e conflitos globais, incentiva a corrupção e continua sendo uma fonte de fundos para alguns dos regimes mais repressivos do mundo.”

Especialistas em inteligência disseram ao Observer que o comércio ilícito de cigarros no norte da África é o “ponto baixo” do contrabando de cigarros. O verdadeiro dinheiro, eles disseram, vem de enviar produtos de grandes marcas de volta para a Europa através da Grécia, Espanha ou até a Itália. Até agora, acreditava-se que este fosse um pequeno mas crescente mercado para os contrabandistas.

Embora não haja sugestão de que as gigantes do tabaco trabalhem ativamente com grupos terroristas, monitorar o destino de seus produtos é extremamente difícil. O uso pelas companhias de intermediários bem conectados torna quase impossível rastrear seus cigarros. Documentos compartilhados com o Observer por especialistas em inteligência mostram que um intermediário, que regularmente compra produtos de uma grande empresa de tabaco, tem uma complexa operação com escritórios, armazéns e contas bancárias em Chipre, Bruxelas, Dubai, Malásia, Egito, Israel, Uruguai, Panamá e Cingapura, que lhe permite movimentar cigarros ao redor do mundo sem ser rastreado.

“Os que fornecem ‘proteção’ nas rotas — muitas vezes agentes de alfândega ou serviços de segurança, mas em alguns casos ‘terroristas’ — ganham um bom dinheiro por pouco trabalho”, disse um especialista em inteligência que trabalhou em operações de contraterrorismo. “O melhor para eles é que o negócio é pago em dólares ou em euros. É moeda dura em contas limpas que eles podem usar à vontade para comprar o que precisarem.”

Especialistas querem que os países ratifiquem o tratado internacional sobre o comércio ilícito de tabaco, que obrigaria as empresas de cigarros a monitorar e rastrear a distribuição de seus produtos enquanto realizam as devidas diligências sobre seus clientes.

“A única maneira de se efetivamente policiar isto é se os fabricantes aceitarem a responsabilidade legal por seus produtos em toda a cadeia de suprimento — isso os obrigará a lidar com agentes honrados”, disse Eric LeGresley, um advogado canadense que estudou as empresas de tabaco.

Ironicamente, Belmokhtar pode ter tido sucesso demais no contrabando. Há rumores de que no final do ano passado ele foi obrigado a sair da AQMI e de sua base no Mali depois que os líderes da organização questionaram seu comprometimento com a causa. Mr. Marlboro estaria mais interessado em dinheiro que em ideais, eles sugeriram.

A chacina no Saara pode ter sido uma tentativa grotesca de Belmokhtar provar que eles estavam errados, algo que tem enormes consequências para suas operações de contrabando.

“Seus dias como contrabandista terminaram”, previu Bøås. “Nenhum bandido ou negociante vai querer que ele esteja a menos de um quilômetro de distância agora. Eles não querem ser visados por aviões teleguiados norte-americanos.”

Mas, diante do dinheiro em jogo, não faltarão outros dispostos a assumir seu lugar.

Tabaco e terrorismo

Taleban. Em todo o cinturão tribal do Paquistão, milícias taleban coletam dinheiro de contrabandistas de cigarros em troca de permitir que falsificações de Marlboro e marcas locais baratas passem para o Afeganistão e a China. Os cigarros tornaram-se uma fonte cada vez mais importante de dinheiro para os grupos, perdendo apenas para o comércio de heroína, segundo autoridades de inteligência paquistanesas.

PKK. Cobra uma taxa para cada contêiner de cigarros que permite passar por seu território. Controlou o fluxo do contrabando de cigarros para o Iraque na década de 1990; hoje controla a enchente de cigarros contrabandeados para fora desse país.

Farc. O maior fornecedor de cocaína do mundo muitas vezes usa suas bem estabelecidas rotas de contrabando para movimentar cigarros norte-americanos, de acordo com evidências oferecidas pelo Senado dos EUA.

CNDP. Em 2008, a ONU afirmou que o Congresso Nacional pela Defesa do Povo, um grupo rebelde apoiado pelos tutsis e acusado de atrocidades, estava sendo financiado por Tribert Rujugiro Ayabatwa, um magnata dos cigarros que se declarou culpado de acusações de evasão fiscal de cigarros na África do Sul.

Fontes: Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, Escritório da ONU para Drogas e Crime.

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