Cultura

Conflito no Mali coloca patrimônio da humanidade em risco

Tomada pelas forças rebeldes, região de Tombuctu abriga 26 bibliotecas e 700 mil manuscritos dos séculos 13 a 20 em línguas árabes e africanas

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Por Ana Paula Ferraz de Oliveira

“Um dos meus sonhos sempre foi ir a Tombuctu antes de morrer”, confessou Umberto Eco na obra Não Contem Com o Fim do Livro. O interesse do escritor e semiólogo italiano era visitar as bibliotecas da região, no centro do Mali, onde floresceu, antes do Renascimento na Europa, o maior núcleo acadêmico e comercial da África.

 

Desde a Idade Média, Tombuctu atraia estudantes que usavam livros como moeda de troca em busca de conhecimento dos sábios negros do Mali. O patrimônio cultural abriga mais de 700 mil manuscritos produzidos entre os séculos 13 e 20 em línguas árabes e africanas. Felizmente, Eco concretizou o seu desejo e conheceu o local, onde pôde constatar uma cultura oral determinada por livros. Mas quem ainda não teve a oportunidade de conhecer esse patrimônio cultural reconhecido pela Unesco corre o risco de nunca fazê-lo. Como uma miragem, esse oásis de conhecimento em pleno deserto do Saara está à beira do desaparecimento: Tombuctu está tomada pelas forças rebeldes e, na última segunda-feira 14, foi alvo de bombardeios franceses.

A região abriga, ao todo, 26 bibliotecas, espalhadas pelas cidades de Gao (alvo de bombardeios nessa segunda), Bamba, Rhrous, Ber e Tombuctu, capital da região, que concentra mais da metade das obras. Os manuscritos ali guardados versam sobre temas como matemática, química, física, ótica, astronomia, medicina, história, geografia, ciências islâmicas, leis e tratados, jurisprudência e entre outros assuntos. São, portanto, uma das mais importantes de partida para reflexão sobre as tradições escritas na África.

Antes do conflito na região, esse legado islâmico, intelectual, acadêmico e espiritual do continente já estava ameaçado por outros fatores. De acordo com o site da Timbuktu Educational Foundation (www.timbuktufoundation.org), que tem a custódia legal dos manuscritos e arrecada fundos para restaurar, preservar, traduzir e publicar os documentos, as páginas estão frágeis e se desintegram facilmente. De acordo com o grupo Tombouctou Manuscripts (www.tombouctoumanuscripts.org), da University of Cape Town (UCT), dedicado à pesquisa de aspectos da escrita e da leitura dos manuscritos, a preservação do patrimônio é “fundamental para modificar a imagem estereotipada do primitivo selvagem como a verdadeira representação da civilização africana”.

 

“É inexato imaginar um continente africano sem livros, como se livros tivessem sido a marca distintiva de nossa civilização”, afirmou o roteirista francês Jean-Claude Carrière, também em Não contém com o fim do livro.

O conflito na região levou a Unesco a fazer um apelo para que todas as forças militares no Mali façam esforços para proteger o patrimônio cultural de Tombuctu. Uma carta assinada pela diretora-geral da entidade, Irina Bokova, foi enviada às autoridades francesas e malinesas invocando a Convenção de Haia, de 1954. “O patrimônio cultural do Mali é uma joia cuja proteção é importante para toda a humanidade. Ele carrega a identidade e os valores de um povo. A atual intervenção militar deve proteger as pessoas e assegurar este patrimônio”, defendeu.

Antecipando as operações militares na região, a Unesco providenciou um levantamento das características topográficas dos monumentos históricos direcionado ao comando das tropas e brochuras individuais com informações para os soldados, com a intenção de prevenir mais danos.

Os alertas não são em vão. O conflito no Mali já provocou perdas relevantes para o patrimônio cultural de Tombuctu no ano passado. Em dezembro de 2012, ao menos três mausoléus foram danificados. Outras ondas de estragos foram registradas em julho do mesmo ano. Na ocasião, a Unesco organizou duas missões de emergência ao país e o Comitê do Patrimônio Mundial criou um fundo de emergência para reabilitação e resguardo dos bens culturais. “A devastação a esse tesouro inestimável é um crime contra o povo de Mali, que sempre mostrou grande tolerância pelos diferentes tipos de religião, crenças e práticas espirituais”, declarou, à época, Bokova.

Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação Matemática da PUC-SP, Saddo Ag Almouloud leciona no Brasil mas nasceu numa pequena aldeia na região de Tombuctu chamada Karaukamba. Ele passa férias acadêmicas em Bamako, capital do Mali, que está “relativamente calma”, segundo revelou a Carta Capital. Ele conta que Tombuctu teve a primeira e a maior universidade islâmica da África negra. “Da produção dessa universidade nasceram várias bibliotecas cuja mais conhecida é Ahmed Baba”, explica. Almouloud se declara a favor da intervenção internacional e lamenta os danos aos monumentos já registrados. Ele não acredita, porém, que o patrimônio esteja ameaçado pelos bombardeios franceses, mas pela imprevisibilidade dos jihadistas. “Eles não têm nada de muçulmanos e já destruíram alguns monumentos em Tombuctu. Não acredito que estejam preocupados com esse patrimônio”, afirma.

“Fico profundamente triste pelo que está acontecendo com meu país, sou profundamente contra os jihadistas e completamente a favor da atual intervenção da francesa e internacional, pois o país está correndo perigo de sua existência como nação. Estou torcendo para que o Mali recupere sua estabilidade e paz”, disse.

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