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Silvio Berlusconi foi, à sua maneira, um iconoclasta

Não, não foi um oportunista. Foi, para o bem e para o mal, um desafiador. Desde o primeiro momento nunca parou de desafiar a política italiana

Após a Operação Mãos Limpas, Berlusconi assumiu o poder na Itália
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Berlusconi, o personagem político Berlusconi, nasce de um duplo vazio – o do fim da guerra fria e o ocaso do confronto ideológico entre grandes narrativas, por um lado; e o do abalo do sistema partidário em consequência da “operação mãos limpas” por outro. Em 1993, o então empresário tomou a decisão de entrar em campo para tentar uma jogada política. Acertou em cheio – nove meses depois de fundar o seu partido ganharia as suas primeiras eleições. Por pouco, é certo, por escassas décimas, mas que foram o bastante para se instalar definitivamente no centro da política italiana, de onde não sairia mais. Até à sua morte, ontem. Um personagem. 

É talvez justo começar por lembrar que Berlusconi se fez a si próprio. Não é produto de um clã, de uma família, de um aparelho – ele construiu o seu próprio império empresarial. Não herdou, não sucedeu, não continuou. Ele criou do nada. Parte do seu encanto político vem desse lado pioneiro e conquistador que sempre explorou junto dos italianos – e das italianas.

Berlusconi foi pioneiro na construção de um novo figurino político que não tinha tradição na política europeia – o de empresário político

Depois, viu a oportunidade. Viu bem o vazio político da Itália pós “mãos limpas”, em particular o vazio na direita política que resultou do fim da Democracia Cristã, descalabro que comandou os governos de Itália durante a guerra fria. Viu a ocasião, viu a necessidade, mas foi o único a mostrar coragem de avançar, de arriscar. Não, não foi um oportunista. Foi, para o bem e para o mal, um desafiador. Desde o primeiro momento nunca parou de desafiar a política italiana. Nos hábitos, nos mitos, no vocabulário – e na imagem. À sua maneira, um iconoclasta.

Berlusconi foi pioneiro na construção de um novo figurino político que não tinha tradição na política europeia – o de empresário político. O que lhe traria consideráveis dissabores em resultado da controvérsia entre os seus interesses empresariais e os interesses públicos. Mas onde ele foi verdadeiramente inovador foi quando trouxe para a política não apenas a figura do empresário, mas a do empresário de mídia. Aí foi, de fato, um grande precursor – utilizou como nenhum outro as suas próprias televisões, ganhando um espaço de intervenção nas campanhas superior aos outros concorrentes.

Nessa medida, Berlusconi é também consequência do movimento europeu de fim do monopólio da televisão pública e abertura das televisões privadas que coincidiu, mais ou menos, com a sua decisão de entrar na política. Insistia em dizer que era melhor em televisão. Mas a verdade é que ele era o dono das televisões – e a ideia de que ganhava eleições com regras do jogo a seu favor nunca mais o largou. 

Sempre foi atacado pelo fato de o seu pensamento político ser demasiado simples. Mas ele gostava assim, e as televisões gostavam ainda mais: keep it simple, short and  stupid. A sua chegada ao poder veio acompanhada de um populismo anti-intelectual e antipolítico que vê na classe política todos os males do país. Trump fala em drenar o pântano de Washington; Berlusconi falava em candidatar-se contra os “politicanti senza mestiere” (politiqueiros sem profissão). O seu programa era Itália, grandezas e misérias. Norberto Bobbio escreveria sobre o berluconismo dizendo que : “ frequentemente me interrogo se não será uma espécie de autobiografia da nação, da Itália de hoje”. Autobiografia. Para Berlusconi, era o suficiente.    

Penso, finalmente, que é justo dizer que Berlusconi gostava da política, do jogo, da intriga, mas não tinha igual apreço pela governança. A sua memória pouco deixa de realização, de obra, de resultados de governo. Mas deixa um impressionante legado quanto à forma de combater, quanto à forma de disputar eleições e de usar a comunicação social. Era um profissional do otimismo – elejam-me e o milagre econômico virá. Em 2011, a burocracia europeia, que nunca o suportou, obrigou-o a sair do governo para dar lugar a um governo de tecnocratas obedientes a Bruxelas. Saiu vencido pela tecnocracia que sempre desprezou. Por uma vez, obedeceu. 

Mas voltaria. Sempre preocupado em agradar. Sempre aparentando energia e bom humor, mesmo quando a idade já se fazia notar. Muitos não suportavam a forma como dizia em público piadas brejeiras. Mas isso nunca o incomodou. A sua autoestima era absolutamente desarmante. Falava orgulhosamente da sua experiência como animador de cruzeiros e das suas competências como alfaiate. Do princípio ao fim da sua carreira política, sempre gostou de desafiar as convenções políticas e esse era o seu traço de caráter mais cativante. Leio nos jornais que em Maio, quando saiu do hospital, disse aos italianos: “voltei a ganhar”. Desafiar até ao fim. Um personagem.

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