Cultura

Os novos goonies

A juventude dos anos 2000 parece ter ganhado um belo similar: O Que Eu Mais Desejo, do japonês Kore-Eda

Os heróis de Goonies, que se arriscam para salvar a pele dos pais: clássico dos anos 80
Apoie Siga-nos no

Quando criança, gastava a ponta dos dedos nos botões de um antigo videocassete assistindo Os Goonies, o clássico de Steven Spielberg dirigido por Richard Donner – e hoje cultuado pelos trintões.

Durante muito tempo achei que se tratava de um filme sobre piratas – ou melhor, sobre crianças em busca de um tesouro perdido, com coragem suficiente para enfrentar uma quadrilha em seu encalço. Minha cena favorita era quando os meninos, quase todos às portas da adolescência, pegam suas bicicletas e saem serpenteando as ruas da cidade até os arrebaldes, onde dão o pontapé inicial da empreitada a partir do porão de um restaurante abandonado. As pedaladas correm ao som de Good Enough, da Cyndi Lauper – e tudo o que você queria saber e tinha vergonha de perguntar sobre os anos 80 está naquela fuga de bicicleta.

Anos depois, assisti ao filme de novo, mas com outro olhar: o olhar daquilo que se perdeu. Explico. No filme, os garotos saem à caça do tesouro não porque queriam torrar as moedas de ouro com coca-cola ou álbum de figurinhas. Queriam salvar os pais da bancarrota. Endividados e sem condições de quitar a hipoteca, eles seriam em breve despejados de suas casas para dar lugar a um grande empreendimento imobiliário. O heroísmo dos garotos era movido, portanto, pela necessidade, um impulso que seus pais, ancorados no conformismo, não poderiam manifestar.

Assistir àquele filme de novo foi como lembrar de um tempo em que uma boa bicicleta e outra boa dúzia de amigos eram matéria-prima suficiente para acreditar que era possível dar a volta ao mundo e mudar tudo. O mundo era inerte, torto e injusto, mas a noção do impossível, do ridículo e do utópico só seria apresentada muito mais tarde.

Pois bem. Tantos anos depois, é ainda difícil encontrar um filme à altura do clássico de Spielberg, mas a juventude dos anos 2000 parece ter ganhado um belo similar. Foi o que pensei ao deixar ontem a sessão de O Que Eu Mais Desejo, longa do japonês Hirokazu Kore-Eda há duas semanas em cartaz em São Paulo.

A lógica é mais ou menos a mesma: a reunião de crianças correndo em fila indiana em direção ao mundo real, vendido como encantado e entregue cheio de estragos pelos adultos. Elas são as únicas a acreditar que podem fazer algo para mudar as coisas.

Mas não estão a sós. No filme, três etapas da vida são sobrepostas num mesmo cenário.

A primeira, foco principal, é a das crianças. Em plena segunda década do novo século (novo para quem nasceu no velho) e já imersos em parafernálias eletrônicas inexistentes anos atrás, a infância no Japão parece comum à infância de qualquer adulto, de qualquer parte do mundo e em qualquer período. Está tudo ali intacto: a correria da entrada do colégio; as broncas dos professores; a vontade de se expressar em papeis sulfite com lápis, tinta e canetão; as festas com fogos de artifício; os questionamentos sobre expressões comuns aos adultos (“revisão administrativa?”); as transgressões para faltar à aula; a propensão aos truques e à teatralidade; o espanto com os primeiros sinais da paixão; o despudor em escovar os dentes em banheiros coletivos; a capacidade de elaborar planos infalíveis sobre viagens aparentemente inalcançáveis; a crença de que desejo e boa vontade bastam para conseguir o que se quer; a vontade, por fim, de manter todos juntos num mesmo espaço para sempre – apunhalada pelo fantasma da separação dos pais e o rompimento dos laços com a primeira casa, o primeiro bairro, os primeiros amigos, a primeira escola.

Num segundo plano estão os tais adultos, economicamente ativos, racionais, preparados, fortes e vacinados, mas incapazes de se conversar, de se acertar, de ceder e de ouvir. E sempre diante dos olhares reprovadores de crianças a pedir serenidade a poços de impulsões e ofensas (numa das cenas, as crianças são obrigadas a apartar uma guerra de comida na mesa de jantar provocada pela derradeira briga entre os pais).

Na outra ponta estão os velhos. Durante o filme, Kore-Eda foca as andanças, manias, planos e transgressões comuns também à terceira idade (como comer o doce proibido em épocas de diabetes), colocando os personagens num campo mais próximo das crianças que dos adultos de ontem. Enquanto os pais não se resolvem, e seguem absortos em seus planos para sobreviver e não viver, os velhos se compadecem dos personagens-mirins, todos expansivos na missão de consertar o mundo herdado na geração anterior a deles. Os avós do filme parecem ser os únicos capazes de criar vínculos com as crianças e levá-las a sério. Em pontos equidistantes, parecem compartilhar o mesmo estranhamento com a ebulição do mundo da idade produtiva.

No meio do turbilhão, as crianças dividem entre elas seus primeiros segredos mais sinceros. Ninguém explicou para elas ainda que a felicidade em si é uma busca inalcançável, já que sobreposta por desejos criados a partir de desejos atendidos, como explica a filosofia da fossa. Para elas, a vida e a morte se resumem aos desejos ainda incipientes: um quer se casar com a professora; outra, aprender a desenhar; outro quer fazer o cachorro de estimação voltar à vida; outra quer ser atriz. E os irmãos, obrigados a se comunicar por telefone por causa da briga dos pais, um em cada cidade, querem voltar a viver juntos como antes.

Como?

Basta fazer o pedido quando um trem-bala passar pelo outro num determinado ponto do país – que eles tentam alcançar para poder apresentar o pedido no momento certo. É nisso que elas acreditam, e nisso se agarram numa fé só comum àquela idade. Não tente explicar para um adulto por que a criança fecha os olhos em oração esperando que, ao abri-los, o mundo seja outro; para o adulto, é preciso merecer esse outro mundo; para a criança, basta querer poder. A criança, explicaria João Guimarães Rosa, é o único ser capaz de olhar para um ovo e encontrar semelhança com um espeto.

Porque novas, as almas infantis são imensas, e o esforço, diria um certo poeta português, não seria jamais em vão.

A busca em O Que Eu Mais Desejo é comovente: muitos à saída da sessão se mostravam anestesiados com o mergulho de sentidos, despertos por pequenos prazeres infantis jamais revividos, como pular na água, alcançar o alto do monte por contra própria, levar o cachorro para passear, driblar algum adulto, caçar os farelos no pacote de salgadinho, esperar a primeira colheita, assistir o pai tocar música, voltar para casa faminto – uma casa iluminada pela lua e um lâmpada velha de quintal no início da noite, os cães latindo à entrada, sempre à espera de alguém para o jantar.

Não era pedir muito.

Quando criança, gastava a ponta dos dedos nos botões de um antigo videocassete assistindo Os Goonies, o clássico de Steven Spielberg dirigido por Richard Donner – e hoje cultuado pelos trintões.

Durante muito tempo achei que se tratava de um filme sobre piratas – ou melhor, sobre crianças em busca de um tesouro perdido, com coragem suficiente para enfrentar uma quadrilha em seu encalço. Minha cena favorita era quando os meninos, quase todos às portas da adolescência, pegam suas bicicletas e saem serpenteando as ruas da cidade até os arrebaldes, onde dão o pontapé inicial da empreitada a partir do porão de um restaurante abandonado. As pedaladas correm ao som de Good Enough, da Cyndi Lauper – e tudo o que você queria saber e tinha vergonha de perguntar sobre os anos 80 está naquela fuga de bicicleta.

Anos depois, assisti ao filme de novo, mas com outro olhar: o olhar daquilo que se perdeu. Explico. No filme, os garotos saem à caça do tesouro não porque queriam torrar as moedas de ouro com coca-cola ou álbum de figurinhas. Queriam salvar os pais da bancarrota. Endividados e sem condições de quitar a hipoteca, eles seriam em breve despejados de suas casas para dar lugar a um grande empreendimento imobiliário. O heroísmo dos garotos era movido, portanto, pela necessidade, um impulso que seus pais, ancorados no conformismo, não poderiam manifestar.

Assistir àquele filme de novo foi como lembrar de um tempo em que uma boa bicicleta e outra boa dúzia de amigos eram matéria-prima suficiente para acreditar que era possível dar a volta ao mundo e mudar tudo. O mundo era inerte, torto e injusto, mas a noção do impossível, do ridículo e do utópico só seria apresentada muito mais tarde.

Pois bem. Tantos anos depois, é ainda difícil encontrar um filme à altura do clássico de Spielberg, mas a juventude dos anos 2000 parece ter ganhado um belo similar. Foi o que pensei ao deixar ontem a sessão de O Que Eu Mais Desejo, longa do japonês Hirokazu Kore-Eda há duas semanas em cartaz em São Paulo.

A lógica é mais ou menos a mesma: a reunião de crianças correndo em fila indiana em direção ao mundo real, vendido como encantado e entregue cheio de estragos pelos adultos. Elas são as únicas a acreditar que podem fazer algo para mudar as coisas.

Mas não estão a sós. No filme, três etapas da vida são sobrepostas num mesmo cenário.

A primeira, foco principal, é a das crianças. Em plena segunda década do novo século (novo para quem nasceu no velho) e já imersos em parafernálias eletrônicas inexistentes anos atrás, a infância no Japão parece comum à infância de qualquer adulto, de qualquer parte do mundo e em qualquer período. Está tudo ali intacto: a correria da entrada do colégio; as broncas dos professores; a vontade de se expressar em papeis sulfite com lápis, tinta e canetão; as festas com fogos de artifício; os questionamentos sobre expressões comuns aos adultos (“revisão administrativa?”); as transgressões para faltar à aula; a propensão aos truques e à teatralidade; o espanto com os primeiros sinais da paixão; o despudor em escovar os dentes em banheiros coletivos; a capacidade de elaborar planos infalíveis sobre viagens aparentemente inalcançáveis; a crença de que desejo e boa vontade bastam para conseguir o que se quer; a vontade, por fim, de manter todos juntos num mesmo espaço para sempre – apunhalada pelo fantasma da separação dos pais e o rompimento dos laços com a primeira casa, o primeiro bairro, os primeiros amigos, a primeira escola.

Num segundo plano estão os tais adultos, economicamente ativos, racionais, preparados, fortes e vacinados, mas incapazes de se conversar, de se acertar, de ceder e de ouvir. E sempre diante dos olhares reprovadores de crianças a pedir serenidade a poços de impulsões e ofensas (numa das cenas, as crianças são obrigadas a apartar uma guerra de comida na mesa de jantar provocada pela derradeira briga entre os pais).

Na outra ponta estão os velhos. Durante o filme, Kore-Eda foca as andanças, manias, planos e transgressões comuns também à terceira idade (como comer o doce proibido em épocas de diabetes), colocando os personagens num campo mais próximo das crianças que dos adultos de ontem. Enquanto os pais não se resolvem, e seguem absortos em seus planos para sobreviver e não viver, os velhos se compadecem dos personagens-mirins, todos expansivos na missão de consertar o mundo herdado na geração anterior a deles. Os avós do filme parecem ser os únicos capazes de criar vínculos com as crianças e levá-las a sério. Em pontos equidistantes, parecem compartilhar o mesmo estranhamento com a ebulição do mundo da idade produtiva.

No meio do turbilhão, as crianças dividem entre elas seus primeiros segredos mais sinceros. Ninguém explicou para elas ainda que a felicidade em si é uma busca inalcançável, já que sobreposta por desejos criados a partir de desejos atendidos, como explica a filosofia da fossa. Para elas, a vida e a morte se resumem aos desejos ainda incipientes: um quer se casar com a professora; outra, aprender a desenhar; outro quer fazer o cachorro de estimação voltar à vida; outra quer ser atriz. E os irmãos, obrigados a se comunicar por telefone por causa da briga dos pais, um em cada cidade, querem voltar a viver juntos como antes.

Como?

Basta fazer o pedido quando um trem-bala passar pelo outro num determinado ponto do país – que eles tentam alcançar para poder apresentar o pedido no momento certo. É nisso que elas acreditam, e nisso se agarram numa fé só comum àquela idade. Não tente explicar para um adulto por que a criança fecha os olhos em oração esperando que, ao abri-los, o mundo seja outro; para o adulto, é preciso merecer esse outro mundo; para a criança, basta querer poder. A criança, explicaria João Guimarães Rosa, é o único ser capaz de olhar para um ovo e encontrar semelhança com um espeto.

Porque novas, as almas infantis são imensas, e o esforço, diria um certo poeta português, não seria jamais em vão.

A busca em O Que Eu Mais Desejo é comovente: muitos à saída da sessão se mostravam anestesiados com o mergulho de sentidos, despertos por pequenos prazeres infantis jamais revividos, como pular na água, alcançar o alto do monte por contra própria, levar o cachorro para passear, driblar algum adulto, caçar os farelos no pacote de salgadinho, esperar a primeira colheita, assistir o pai tocar música, voltar para casa faminto – uma casa iluminada pela lua e um lâmpada velha de quintal no início da noite, os cães latindo à entrada, sempre à espera de alguém para o jantar.

Não era pedir muito.

ENTENDA MAIS SOBRE: ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo