Cultura

Em dois instantes

O Instituto Moreira Salles leva a São Paulo as imagens feitas por O Cruzeiro antes e depois da Leica

No período de uma década, ao investir no fotojornalismo, a revista foi o retrato da novidade no País. Foto: José Medeiros/MIS
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A reportagem tem início em 1947 com o rasante do bimotor na clareira onde habitavam os xavantes. As tomadas aéreas em preto e branco, publicadas em muitas páginas de revista, revelam um fotógrafo apaixonado pelo contraste. Logo ele dispõe os selvagens em fila, arco e flecha apontados na direção da aeronave, como se avisados da ameaça branca. Em terra, a expedição jornalística troca objetos com os índios como faria Pedro Álvares Cabral. Uma floresta de cinema, dizem as fotos, ainda que tiradas em campo real. Jean Manzon (1915-1990) talvez tenha sido o mais empedernido francês com uma Rolleiflex na mão. Seu trabalho não só prometia revolucionar a imprensa brasileira, como redescobrir o País, à moda do que se constata na exposição As Origens do Fotojornalismo no Brasil: Um olhar sobre O Cruzeiro (1940-1960), até 31 de março, no Instituto Moreira Salles de São Paulo, onde serão exibidas 170 fotos, 120 revistas sob instalações de vidro, 16 matérias originais e informações em vídeo sobre as reportagens em torno do carnaval e do futebol.

Manzon obedecia ao chamado da floresta ou à chefia de reportagem de O Cruzeiro? Difícil dizer onde começavam a aventura e o senso de dever no trabalho desse fotógrafo que antes atuara na revista Paris Match, mas deixara a França envolto em suspeita de colaboracionismo, para aqui trabalhar como funcionário do Departamento de Imprensa e Propaganda. Daquele DIP onde engrandeceria a imagem dos homens duros do Estado Novo só sairia para o mundo corporativo de Assis Chateaubriand depois de ter o salário dobrado. Ainda assim, mais conhecido por seus cinejornais detalhistas, que pareciam mostrar o exato peso de uma bola de capotão, Manzon deplorava as péssimas condições em que era impressa a revista, criada duas décadas antes de sua chegada. Tudo o que era preto, por exemplo, a gráfica transformava em marrom.

“Revista O Cruzeiro, o cocô do Chatô”, birravam os fotógrafos da revista de modo a aliviar sua indignação de profissionais, todos dispostos ao trabalho humanista, todos capazes de escrever muito mais que legendas, todos influenciados pela revolução promovida pela agência fotográfica Magnum, e todos muito bem pagos para compor reportagens longuíssimas nos rincões brasileiros ou nas urbes americanas, europeias, orientais. Manzon implementou o conceito de fotojornalismo naquela década por meio de imagens sequenciadas, às vezes duas dezenas de fotos a ilustrar um único texto, como na Life, entre o fait divers e a nova arte brasileira. Mas Manzon tinha suas cismas. Foto, só com flash. Máquina, só a flex, aquela que, ironizava Henri Cartier-Bresson, fotografava sob a perspectiva do umbigo. Filme, só de 120 mm. Mas os novos da fotografia queriam a agilidade que só a Leica, com o filme de 35 mm, poderia lhes dar.

O piauiense José Medeiros (1921-1990) era o mais brilhante entre os novos fotógrafos da revista, um revolucionário da imagem, adepto do instante único, dos retratos dos personagens brasileiros das ruas, de negros e índios. Ele tornou célebre o ritual que formava as filhas de santo, ao fotografá-las no escuro. A reportagem, contudo, invalidou aquelas mulheres para o candomblé, uma vez que elas quebraram a regra do rito fechado. Como outros fotógrafos da revista, a exemplo de Flávio Damm e Luciano Carneiro, Medeiros dizia aos chefes que seu flash tinha se espatifado, apenas para usar a própria Leica na reportagem, com isso forçando a revista a encontrar um equipamento compatível para revelar os filmes. “Enfiamos o 35 mm garganta abaixo deles”, diz Damm por telefone a CartaCapital, do Rio de Janeiro, onde mora e onde a Caixa Cultural receberá sexta-feira dia 23 uma retrospectiva própria, com 85 de suas fotos. Damm tem 84 anos, dorme tarde, almoça às 17h30, sua memória é impecável e fala, se o deixarem, tanto quanto aquele Fidel Castro que o amigo Luiz Carlos Barreto fotografou de maneira célebre, em 1959. E Medeiros é um de seus heróis.

Contudo, forçoso dizer que esse fotógrafo começara como Manzon, no literal quadrado do academicismo. A professora Helouise Costa, curadora da exposição e do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, autora de um mestrado em torno de O Cruzeiro e de um doutorado sobre Manzon, aponta, por exemplo, o grande contraste de luz e a existência de pose no célebre índio Iaulapiti colhido por Medeiros na Serra do Roncador, em 1949. Era um artista em seu início. “Não acho bom dividir o tempo todo esses fotógrafos em duas turmas”, ela diz. “Ouvi muito sobre o politicamente correto quando pesquisei Jean Manzon.” Helouise não encontrou em arquivos, mas em sebos e leilões da internet as coleções de revistas ora expostas. A partir de dezembro, um livro a ser editado pelo IMS organizará o material da exibição, diminuindo a distância entre o que o público e a academia sabem sobre a história fotográfica.

Por insistência do coordenador de fotografia do IMS, Sergio Burgi, aceita de bom grado por Helouise, a exposição revelará, por exemplo, a obra internacionalizada de Luciano Carneiro, de sofisticada composição, e que permanecia esquecida por conta das terríveis circunstâncias de sua morte. Ele, que antes de fotografar fora paraquedista e piloto de avião para Chatô, arriscando-se em conflitos, morreu em um acidente aéreo a caminho da cobertura de um concurso de miss, em 1959, aos 33 anos. Sua família procurou o Instituto recentemente, entregando-lhe em estado precário quase duas centenas de suas fotos restantes.

Os tempos eram duros, mas eram os melhores, avalia Damm, para quem a fotografia, em que pese sua atual valorização museológica, passa por um “processo de desconstrução” sem retorno. Um grande jornal do Brasil, ele conta, agora ensina os fotógrafos a usar o vídeo, para que um editor possa extrair dele o instante mais adequado à publicação. A seu ver, isso constitui ofensa ao momento decisivo, à fotografia concebida para ter a composição exata, com a densidade da pintura, esta, por sinal, aos poucos extinta. “Eu não uso digital e, como bressoniano, preparo a imagem na hora do clique, sem cortar depois. Quando fotografo, me aproximo do objeto como um gato e fujo como um rato”, ele diz. “Mas, agora, querem destruir a privacidade que há entre o fotógrafo e o fotografado. Não estou lamentando, mas o facilitário do computador destrói a fotografia, que desse modo perde o padrão cultural, o sentido da composição. E, se você quer saber, os culpados para que tenhamos chegado a isso fomos nós mesmos, os fotógrafos, ao mostrar que a fotografia valia a pena.”

A reportagem tem início em 1947 com o rasante do bimotor na clareira onde habitavam os xavantes. As tomadas aéreas em preto e branco, publicadas em muitas páginas de revista, revelam um fotógrafo apaixonado pelo contraste. Logo ele dispõe os selvagens em fila, arco e flecha apontados na direção da aeronave, como se avisados da ameaça branca. Em terra, a expedição jornalística troca objetos com os índios como faria Pedro Álvares Cabral. Uma floresta de cinema, dizem as fotos, ainda que tiradas em campo real. Jean Manzon (1915-1990) talvez tenha sido o mais empedernido francês com uma Rolleiflex na mão. Seu trabalho não só prometia revolucionar a imprensa brasileira, como redescobrir o País, à moda do que se constata na exposição As Origens do Fotojornalismo no Brasil: Um olhar sobre O Cruzeiro (1940-1960), até 31 de março, no Instituto Moreira Salles de São Paulo, onde serão exibidas 170 fotos, 120 revistas sob instalações de vidro, 16 matérias originais e informações em vídeo sobre as reportagens em torno do carnaval e do futebol.

Manzon obedecia ao chamado da floresta ou à chefia de reportagem de O Cruzeiro? Difícil dizer onde começavam a aventura e o senso de dever no trabalho desse fotógrafo que antes atuara na revista Paris Match, mas deixara a França envolto em suspeita de colaboracionismo, para aqui trabalhar como funcionário do Departamento de Imprensa e Propaganda. Daquele DIP onde engrandeceria a imagem dos homens duros do Estado Novo só sairia para o mundo corporativo de Assis Chateaubriand depois de ter o salário dobrado. Ainda assim, mais conhecido por seus cinejornais detalhistas, que pareciam mostrar o exato peso de uma bola de capotão, Manzon deplorava as péssimas condições em que era impressa a revista, criada duas décadas antes de sua chegada. Tudo o que era preto, por exemplo, a gráfica transformava em marrom.

“Revista O Cruzeiro, o cocô do Chatô”, birravam os fotógrafos da revista de modo a aliviar sua indignação de profissionais, todos dispostos ao trabalho humanista, todos capazes de escrever muito mais que legendas, todos influenciados pela revolução promovida pela agência fotográfica Magnum, e todos muito bem pagos para compor reportagens longuíssimas nos rincões brasileiros ou nas urbes americanas, europeias, orientais. Manzon implementou o conceito de fotojornalismo naquela década por meio de imagens sequenciadas, às vezes duas dezenas de fotos a ilustrar um único texto, como na Life, entre o fait divers e a nova arte brasileira. Mas Manzon tinha suas cismas. Foto, só com flash. Máquina, só a flex, aquela que, ironizava Henri Cartier-Bresson, fotografava sob a perspectiva do umbigo. Filme, só de 120 mm. Mas os novos da fotografia queriam a agilidade que só a Leica, com o filme de 35 mm, poderia lhes dar.

O piauiense José Medeiros (1921-1990) era o mais brilhante entre os novos fotógrafos da revista, um revolucionário da imagem, adepto do instante único, dos retratos dos personagens brasileiros das ruas, de negros e índios. Ele tornou célebre o ritual que formava as filhas de santo, ao fotografá-las no escuro. A reportagem, contudo, invalidou aquelas mulheres para o candomblé, uma vez que elas quebraram a regra do rito fechado. Como outros fotógrafos da revista, a exemplo de Flávio Damm e Luciano Carneiro, Medeiros dizia aos chefes que seu flash tinha se espatifado, apenas para usar a própria Leica na reportagem, com isso forçando a revista a encontrar um equipamento compatível para revelar os filmes. “Enfiamos o 35 mm garganta abaixo deles”, diz Damm por telefone a CartaCapital, do Rio de Janeiro, onde mora e onde a Caixa Cultural receberá sexta-feira dia 23 uma retrospectiva própria, com 85 de suas fotos. Damm tem 84 anos, dorme tarde, almoça às 17h30, sua memória é impecável e fala, se o deixarem, tanto quanto aquele Fidel Castro que o amigo Luiz Carlos Barreto fotografou de maneira célebre, em 1959. E Medeiros é um de seus heróis.

Contudo, forçoso dizer que esse fotógrafo começara como Manzon, no literal quadrado do academicismo. A professora Helouise Costa, curadora da exposição e do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, autora de um mestrado em torno de O Cruzeiro e de um doutorado sobre Manzon, aponta, por exemplo, o grande contraste de luz e a existência de pose no célebre índio Iaulapiti colhido por Medeiros na Serra do Roncador, em 1949. Era um artista em seu início. “Não acho bom dividir o tempo todo esses fotógrafos em duas turmas”, ela diz. “Ouvi muito sobre o politicamente correto quando pesquisei Jean Manzon.” Helouise não encontrou em arquivos, mas em sebos e leilões da internet as coleções de revistas ora expostas. A partir de dezembro, um livro a ser editado pelo IMS organizará o material da exibição, diminuindo a distância entre o que o público e a academia sabem sobre a história fotográfica.

Por insistência do coordenador de fotografia do IMS, Sergio Burgi, aceita de bom grado por Helouise, a exposição revelará, por exemplo, a obra internacionalizada de Luciano Carneiro, de sofisticada composição, e que permanecia esquecida por conta das terríveis circunstâncias de sua morte. Ele, que antes de fotografar fora paraquedista e piloto de avião para Chatô, arriscando-se em conflitos, morreu em um acidente aéreo a caminho da cobertura de um concurso de miss, em 1959, aos 33 anos. Sua família procurou o Instituto recentemente, entregando-lhe em estado precário quase duas centenas de suas fotos restantes.

Os tempos eram duros, mas eram os melhores, avalia Damm, para quem a fotografia, em que pese sua atual valorização museológica, passa por um “processo de desconstrução” sem retorno. Um grande jornal do Brasil, ele conta, agora ensina os fotógrafos a usar o vídeo, para que um editor possa extrair dele o instante mais adequado à publicação. A seu ver, isso constitui ofensa ao momento decisivo, à fotografia concebida para ter a composição exata, com a densidade da pintura, esta, por sinal, aos poucos extinta. “Eu não uso digital e, como bressoniano, preparo a imagem na hora do clique, sem cortar depois. Quando fotografo, me aproximo do objeto como um gato e fujo como um rato”, ele diz. “Mas, agora, querem destruir a privacidade que há entre o fotógrafo e o fotografado. Não estou lamentando, mas o facilitário do computador destrói a fotografia, que desse modo perde o padrão cultural, o sentido da composição. E, se você quer saber, os culpados para que tenhamos chegado a isso fomos nós mesmos, os fotógrafos, ao mostrar que a fotografia valia a pena.”

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