Cultura

Cadão Volpato, do Fellini: “O rock como instituição não me interessa”

No primeiro vídeo da série CartaTeca, o vocalista e letrista da banda paulistana reflete sobre o conservadorismo no estilo e no País

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Cadão Volpato costuma brincar que o Fellini é uma banda “independente, inclusive do sucesso”. Se a medida do reconhecimento são discos de platina e a ascendência messiânica sobre o público, a banda paulistana de rock formada em 1984 de fato não converteu arte em lucro como alguns contemporâneos. Quando assinar com uma gravadora era um caminho relativamente acessível, o Fellini preferiu registrar discos por sua conta e risco.

Como nem tudo é “uma mera questão de dinheiro”, verso de Rock Europeu, uma das mais conhecidas canções do grupo, o triunfo das letras inspiradas de Volpato e da sonoridade “estranha” da banda, como ele próprio define, é sua influência sobre artistas e ouvintes jovens, tanto pela atitude “faça você mesmo” como pela ousadia artística.

Primeiro entrevistado da série de vídeos CartaTeca, destinada a preservar a memória da música brasileira e divulgar novos artistas, Volpato atribui a admiração dos mais jovens pelo Fellini aos álbuns gravados em 1980 e 1990, produzidos de forma independente por Thomas Pappon, guitarrista da banda.“O fato de ter discos muda tudo. Preservamos esse espírito da forma mais livre possível para o futuro, o que possibilitou a outras pessoas serem levadas por aquela trilha sonora. ”

“O rock enquanto instituição não me interessa. Porque aí você cria esse tipo de roqueiro velho, que vive da instituição que ele ajudou a criar”

Após uma hiato de shows, o Fellini voltou a se apresentar em 2016. Em abril, a banda tocou na íntegra o disco Amor Louco, lançado em 1990, para um ótimo público presente ao Sesc Belenzinho, em São Paulo. Em setembro, Volpato juntou-se a Jair Marcos, guitarrista do Fellini, para apresentar algumas de suas melhores composições para fãs atentos, de ontem e de hoje, no Sesc Santana.

O bom número de rostos jovens nos shows deste ano continuam a atestar a admiração que o Fellini desperta nas gerações mais recentes. Nos anos 1990, uma fita cassete do Funziona Senza Vapore, projeto paralelo de parte dos integrantes da banda paulistana, chegou às mãos de Chico Science e de seus amigos em Pernambuco.

Anos depois, Volpato ditaria por telefone ao principal expoente do manguebeat os versos de Criança de Domingo, registrada pelo músico pernambucano e pela Nação Zumbi no álbum Afrociberdelia, de 1996. Recentemente, a cantora Céu regravou em seu album Tropix, lançado neste ano, a canção Chico Buarque Song, outro clássico do Fellini.   

A recusa em trilhar o caminho do sucesso óbvio quando o rock era a mina de ouro da indústria musical está na essência da banda.  “A gente nunca viveu de música. Isso já cria uma coisa diferente. Para você entrar no mainstream, você precisa estar a fim.”

Exemplos de quem “estava a fim” não se encontravam longe: chegaram a morar no quarto ao lado. Antes da fama, Renato Russo passou uma curta temporada no apartamento de Volpato em São Paulo, antes de seguir para o Rio de Janeiro, então Meca da indústria musical.

“Quando vi a Legião Urbana tocar pela primeira vez foi algo impressionante”, lembra. “Mas com o tempo as letras foram ficando cada vez mais religiosas, e isso não batia com o que pensávamos. Tínhamos um perfil mais engraçado. O sentido de humor era muito importante para a gente. ”

É com humor que Volpato analisa o atual momento do rock e de seus contemporâneos. “O que temos visto no Brasil é que esses roqueiros velhos são um desastre. Quando o cara não é um calveludo, aquele careca com rabo de cavalo, vira tipo o Lobão.”

O fato de Lobão, Roger e outros expoentes da geração do rock dos anos 1980 terem assumido uma posição conservadora nos últimos anos revela, segundo Volpato, a armadilha da obrigação de se adequar aos estereótipos do estilo.

“O rock enquanto instituição não me interessa. Porque aí você cria esse tipo de roqueiro velho, que vive da instituição que ele mesmo ajudou a criar. Aquela coisa de ser jovem para sempre e de ser rebelde. Então ser rebelde é você dizer que tem mais é que arrancar as unhas do cara na tortura?”

Ex-militante trotskista, Volpato considera o atual momento “um dos mais difíceis” que já viveu, embora tenha atravessado seus anos escolares e de faculdade em meio à ditadura.

“Vi todas as armadilhas nesse período. A verdade é que as coisas não mudaram muito, são as mesmas raposas de sempre, a postos, e dispostas a se proteger até o fim”, comenta. “Vivemos no país hoje um risco de as instituições se tornarem policialescas. Já estão se tornando”.

Sua maior preocupação é a perda do respeito à diferença, cada vez mais rarefeito no País. “O problema não é o PT nem a esquerda. Claro que eles têm contas a prestar, pois a esquerda fez enormes burradas nesses últimos anos. Mas daí a aparecer esses caras com taco de beisebol querendo arrebentar a cabeça das pessoas de esquerda é outra história.”

A esquerda fez enormes burradas nesses anos, mas daí a aparecer esses caras com taco de beisebol querendo arrebentar a cabeça de quem é de esquerda é outra história”

Próximo de lançar dois livros relacionados à música, uma coletânea de contos e uma espécie de memória sobre os anos iniciais da banda, Volpato reconhece que o Fellini foi fundamental para sua formação, independentemente do sucesso. “Olho para trás e vejo que tudo que fiz na vida tem a ver com o Fellini. Tive que me render a isso.”

Hoje, o músico, escritor e jornalista não nutre ilusões sobre a revolução mundial, mas preserva o coração inconformado. “Tinha uma poema do Alex Antunes, da nossa época, que dizia assim: ‘Sou anarquista de coração, outra coisa é que Lenin e Trótski tinham razão’. Não sei se Lenin e Trótski tinham razão, pois parece que deu tudo errado. Mas acho que sou anarquista de coração. Tenho uma tendência natural a não me adaptar ao poder.”

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