Cultura

Assim tipo Caio F.

Era um tempo formidável que Caio F. se perguntava: “Será que alguém ainda escreve cartas?” Isso há 25 anos!

"Além da camisa imaculadamente branca com todos os botões fechados, o que mais me chamou a atenção foi aquele jeito de galgo que o Caio F. tinha. Magro, elegante, meio tímido, discreto, na dele". Foto: Paulo Giandalia/Folhapress
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A primeira vez que vi Caio Fernando Abreu foi numa fotografia em branco e preto estampada na capa da Inéditos. A revista chegou de navio meio estropiada lá no meu cafofo da Rue de La Roquette, pertinho da Bastilha. Veio toda enroladinha, embrulhada num papel pardo porque era assim que seguiam as revistas nos anos 70 para se pagar pouco de correio, correio que andava arisco.

A manchete me chamou a atenção: “Eu sou o Ney Matogrosso da literatura brasileira”. Conhecia apenas alguns escritos de Caio Fernando Abreu, praticamente o Caio do Ovo Apunhalado e só. Guardei a revista por muitos e muitos anos até que um dia ela se esfarelou, se perdeu em meio a tantas e tantas mudanças.

Só voltei a ver Caio F. novamente em meados dos anos 80 quando ele chegou para trabalhar conosco no Caderno 2 do Estadão que preparávamos para lançar. Ele veio caladinho, sentou-se diante de uma Olivetti, puxou levemente os fios de cabelo e começou a folhear displicentemente o Caderno B do Jornal do Brasil, uma de suas paixões, vim a saber muito tempo depois.

Além da camisa imaculadamente branca com todos os botões fechados, inclusive o último lá de cima, o que mais me chamou a atenção foi aquele jeito de galgo que ele tinha. Magro, elegante, meio tímido, discreto, na dele. Não sei porque, a partir daquele abril de 1986 passei a enxergá-lo como um galgo mas nunca disse isso a ele. Tinha certeza que se dissesse, com certeza soltaria algo como: “Credo, eu não sou cachorro não…” e daria um sorrisinho maroto bem tipo Caio F.

Durante muito tempo ele escreveu crônicas – as tais Antenas – pra página 2 do nosso caderno e essas crônicas toda segunda-feira caiam nas minhas mãos pra serem copidescadas e publicadas na quarta. Confesso que nunca precisei copidescar coisa alguma, nunca precisei mudar uma vírgula sequer daqueles textos enxutos e impecáveis. Talvez uma única vez acrescentei um segundo g em Peggy Lee na crônica “Então vamos continuar dançando”.

Todas essas crônicas do Caderno 2 foram reunidas agora no livro A vida gritando nos cantos que a Nova Fronteira está colocando nas livrarias. Com muito prazer reli uma por uma de uma talagada só. Quando cheguei na última – “Por aquelas escadas subiu feito uma diva’’ – é que caiu a ficha. Naqueles anos existia um mundo  muito particular, um mundo tipo Caio F.

Era um tempo de chegar em casa com a cabeça cansada e colocar uma Nara básica, bem bossa nova, para ouvir baixinho na radiola. Era tempo de ouvir Cely Campelo e ler Hilda Hilst pra não cair, tempo do rock and roll do The Cure, dos Talking Heads, do Eurythmics, do Police, da Legião, do Cazuza e da Patife Band de Paulo Barnabé. Era tempo da irreverencia dos Mulheres Negras e do desbunde das Frenéticas, bonitas e gostosas.

Era tempo também da revista A-Z, de noitadas dark no Madame Satã, de uma comidinha no Ritz, de sorver Adélia Prado, Ana Cristina C. e Clarice Lispector até quase morrer. O tempo de Caio F. era um tempo de curtir a teoria punk  de Antônio Bivar, as tiradas de Mario Prata, de viajar ao som de Philip Glass e sentir o cheirinho bom daquele incenso vindo lá do Nepal. Era tempo de falar das amigos & amigas, conhecidos, conhecidas ou não. Marco Antonio de Lacerda, Marcio Penido, Nelson Pujol Yamamoto, Eduardo Dusek, Vicente Pereira, Vânia Toledo, Marildinha da WEA, Cecilia Thompson, Silvia Simas.

Últimas crônicas de Alberto Villas:

Berlim!

Era tempo de rasgar elogios a uma ovelha negra chamada Rita Lee e perguntar a Caetano Veloso: Existirmos, a que será que se destina? Era tempo de brincar com novas palavras que saiam da sua cabeça: Jacira, Naja, saia justa, lhama, nigrinha, perua e modelão. Era um tempo de andar pela avenida Paulista pensando na vida, na morte, de elogiar Luiza Erundina e acabar com Jânio Quadros e Fernando Collor de Melo.

Era tempo de rever sempre Marlene Dietrich, de descobrir Win Wenders, de ficar encantado com o Down by Law e de ouvir um velho blues de Bessie Smith no final da noite. Era um tempo formidável que Caio F. se perguntava: “Será que alguém ainda escreve cartas?” Isso há 25 anos! Era um tempo que acabou, que Caio F. chegava em casa e pensava com os botões de sua camisa imaculadamente branca coisas que muita gente hoje nem sabe o que significa. Tipo “é preciso virar a fita da secretária eletrônica”.

 

A primeira vez que vi Caio Fernando Abreu foi numa fotografia em branco e preto estampada na capa da Inéditos. A revista chegou de navio meio estropiada lá no meu cafofo da Rue de La Roquette, pertinho da Bastilha. Veio toda enroladinha, embrulhada num papel pardo porque era assim que seguiam as revistas nos anos 70 para se pagar pouco de correio, correio que andava arisco.

A manchete me chamou a atenção: “Eu sou o Ney Matogrosso da literatura brasileira”. Conhecia apenas alguns escritos de Caio Fernando Abreu, praticamente o Caio do Ovo Apunhalado e só. Guardei a revista por muitos e muitos anos até que um dia ela se esfarelou, se perdeu em meio a tantas e tantas mudanças.

Só voltei a ver Caio F. novamente em meados dos anos 80 quando ele chegou para trabalhar conosco no Caderno 2 do Estadão que preparávamos para lançar. Ele veio caladinho, sentou-se diante de uma Olivetti, puxou levemente os fios de cabelo e começou a folhear displicentemente o Caderno B do Jornal do Brasil, uma de suas paixões, vim a saber muito tempo depois.

Além da camisa imaculadamente branca com todos os botões fechados, inclusive o último lá de cima, o que mais me chamou a atenção foi aquele jeito de galgo que ele tinha. Magro, elegante, meio tímido, discreto, na dele. Não sei porque, a partir daquele abril de 1986 passei a enxergá-lo como um galgo mas nunca disse isso a ele. Tinha certeza que se dissesse, com certeza soltaria algo como: “Credo, eu não sou cachorro não…” e daria um sorrisinho maroto bem tipo Caio F.

Durante muito tempo ele escreveu crônicas – as tais Antenas – pra página 2 do nosso caderno e essas crônicas toda segunda-feira caiam nas minhas mãos pra serem copidescadas e publicadas na quarta. Confesso que nunca precisei copidescar coisa alguma, nunca precisei mudar uma vírgula sequer daqueles textos enxutos e impecáveis. Talvez uma única vez acrescentei um segundo g em Peggy Lee na crônica “Então vamos continuar dançando”.

Todas essas crônicas do Caderno 2 foram reunidas agora no livro A vida gritando nos cantos que a Nova Fronteira está colocando nas livrarias. Com muito prazer reli uma por uma de uma talagada só. Quando cheguei na última – “Por aquelas escadas subiu feito uma diva’’ – é que caiu a ficha. Naqueles anos existia um mundo  muito particular, um mundo tipo Caio F.

Era um tempo de chegar em casa com a cabeça cansada e colocar uma Nara básica, bem bossa nova, para ouvir baixinho na radiola. Era tempo de ouvir Cely Campelo e ler Hilda Hilst pra não cair, tempo do rock and roll do The Cure, dos Talking Heads, do Eurythmics, do Police, da Legião, do Cazuza e da Patife Band de Paulo Barnabé. Era tempo da irreverencia dos Mulheres Negras e do desbunde das Frenéticas, bonitas e gostosas.

Era tempo também da revista A-Z, de noitadas dark no Madame Satã, de uma comidinha no Ritz, de sorver Adélia Prado, Ana Cristina C. e Clarice Lispector até quase morrer. O tempo de Caio F. era um tempo de curtir a teoria punk  de Antônio Bivar, as tiradas de Mario Prata, de viajar ao som de Philip Glass e sentir o cheirinho bom daquele incenso vindo lá do Nepal. Era tempo de falar das amigos & amigas, conhecidos, conhecidas ou não. Marco Antonio de Lacerda, Marcio Penido, Nelson Pujol Yamamoto, Eduardo Dusek, Vicente Pereira, Vânia Toledo, Marildinha da WEA, Cecilia Thompson, Silvia Simas.

Últimas crônicas de Alberto Villas:

Berlim!

Era tempo de rasgar elogios a uma ovelha negra chamada Rita Lee e perguntar a Caetano Veloso: Existirmos, a que será que se destina? Era tempo de brincar com novas palavras que saiam da sua cabeça: Jacira, Naja, saia justa, lhama, nigrinha, perua e modelão. Era um tempo de andar pela avenida Paulista pensando na vida, na morte, de elogiar Luiza Erundina e acabar com Jânio Quadros e Fernando Collor de Melo.

Era tempo de rever sempre Marlene Dietrich, de descobrir Win Wenders, de ficar encantado com o Down by Law e de ouvir um velho blues de Bessie Smith no final da noite. Era um tempo formidável que Caio F. se perguntava: “Será que alguém ainda escreve cartas?” Isso há 25 anos! Era um tempo que acabou, que Caio F. chegava em casa e pensava com os botões de sua camisa imaculadamente branca coisas que muita gente hoje nem sabe o que significa. Tipo “é preciso virar a fita da secretária eletrônica”.

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