Sociedade

O uso de turbantes por pessoas brancas é apropriação cultural?

Uso sem reflexão de objetos e símbolos identificados com a cultura negra reacende o debate sobre o que significa a apropriação cultural

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Um turbante tornou-se o epicentro de um acalorado debate sobre apropriação cultural e racismo, viralizado pelas redes sociais nos últimos dias. 

Identificado como um símbolo da população negra e da ancestralidade africana no Brasil, o adereço ganhou, nos últimos anos, destaque em editoriais de moda e passou a ser encontrado com facilidade em lojas, multiplicando seu uso por pessoas de diversas origens.

A produção em massa do objeto e o uso motivado apenas por interesses estéticos, inspira, porém, críticas e ressalvas feitas pela população negra, que aponta problemas com essa prática, se feita sem reflexão, como a invisibilização de quem produziu aquela cultura. 

Por aqui, a discussão atingiu o ponto de ebulição no início de fevereiro, quando uma estudante de Curitiba escreveu em seu perfil no Facebook que teria sido criticada por mulheres negras por usar um turbante.

O post original foi compartilhado por 38 mil pessoas, um alcance galvanizado pelo fato de a autora justificar o uso do adereço por conta do tratamento que faz para leucemia e pelo uso da hashtag #VaiTerBrancaDeTurbanteSim.

O caso foi alvo de reportagens em diversos veículos e, seus desdobramentos, foco de vários comentários nas redes sociais. 

Não é a primeira vez que o assunto ganha os holofotes. Em 2015, uma das estrelas do reality-show Keeping Up With the Kardashians, Kylie Jenner, foi criticada por uma foto em que aparecia com os cabelos trançados. No Brasil, a marca Farm também recebeu seu quinhão ao publicar um editorial em que apresentava uma modelo branca com um turbante e uma representação também pálida da entidade de matriz africana Iemanjá.

O debate sobre a apropriação cultural, porém, ultrapassa as fronteiras de uma discussão individual sobre se pessoas brancas podem ou não usar adereços como turbante, cabelos trançados ou dreads.

Trata-se, principalmente, de uma discussão sobre racismo, etnocentrismo, capitalismo e sobre o uso que instituições como a indústria da moda fazem de produções de grupos minorizados. Pesquisadora na área de representação do negro na mídia, a bacharel em História e educadora Suzane Jardim explica como se dá o processo de apropriação cultural.

O fenômeno acontece quando um estrato social historicamente dominante marginaliza uma etnia, religião ou cultura, tornando seus símbolos e práticas abomináveis aos olhos da sociedade. Com isso, o grupo marginalizado abandona tais práticas, como uma forma de se adequar, na tentativa de sofrer menos preconceito.

“Com esse processo concluído, o mesmo grupo responsável pela marginalização passa, então, a ressignificar essas práticas e símbolos antes condenados, tentando torná-los atrativos para a maioria da população e visando o lucro”, explica. “Nesse processo, toda a essência simbólica dos elementos é perdida. Eles passam a ser apenas objetos de desejo, cada vez mais caros e inacessíveis para os que foram primeiramente hostilizados”.

A filósofa Djamila Ribeiro, colunista de CartaCapital, dá o exemplo do axé music, nascido no Carnaval de Salvador, a cidade com a população mais negra fora da África. “O axé foi criado por pessoas negras, que hoje pulam o Carnaval segregadas, do outro lado da corda. As cantoras de axé que mais fazem sucesso hoje são brancas e loiras”, diz.

Além disso, o fato de cabelos trançados estarem na moda ou turbantes disponíveis em lojas de departamento e estampados em capas de revistas não se traduz em direitos e respeito aos negros e negras no Brasil. “Eu, quando uso turbante na rua, as pessoas me apontam e me discriminam. Ao mesmo tempo, uma pessoa branca com o mesmo acessório é vista como moderna”, conta Ribeiro.

“A mulher branca que não faz parte de religiões de matriz africana usa o turbante, as tranças ou os dreads porque viu em revistas de moda que aquilo a deixa bela, porque encontrou locais onde poderia comprar tudo aquilo e sabe que receberá elogios com o uso”, afirma Suzane Jardim. Segundo ela, em geral esses elementos são vistos apenas como adereços estéticos.

Assim, explica ela, existe um aval sistêmico para o uso desses objetos, reforçado pela mídia e pela publicidade. Por outro lado, pondera, o mesmo não ocorre com uma mulher negra que toma as mesmas decisões. “É essa diferença de tratamento e de percepção na sociedade que causa o choque”. 

Para Rosane Borges, há um apagamento perverso e histórico das contribuições feitas pelas culturas negras e africanas.

“O Brasil é um país absolutamente apartado do ponto de vista das estruturas, mas que toma a cultura como um símbolo da ausência do racismo, porque somos todos juntos, todo mundo gosta de samba e de futebol”, afirma a colunista de CartaCapital, lembrando que, por outro lado, as verbas destinadas à manutenção das casas de religiões de matriz africana não têm o mesmo vulto das destinadas às igrejas católicas, por exemplo.  

Doutora em Antropologia pela USP, Marina Pereira de Almeida Mello reafirma que a apropriação cultural é um conceito que existe nas Ciências Sociais e Humanas. Ele, no entanto, refere-se muito mais às apropriações feitas pelas indústrias e pelo capitalismo em si do que a ações individuais. 

“Essa proliferação do uso do turbante tem sido estimulada pela indústria, pelas confecções, pela indústria da moda, que tem investido em uma ideia de étnico totalmente descontextualizada”, afirma a professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).

Ela lamenta que o debate sobre um tema importante esteja sendo feito, de forma geral, de maneira tão polarizada e sem aprofundamento. “Para você respeitar, conhecer e reverenciar, é preciso um conhecimento. Como vivemos num mundo racista, isso acaba passando ao largo de todas as discussões”

As especialistas também apontam para a diferença que existe entre uma pessoa branca e uma negra ostentando turbante ou o cabelo trançado.

“Quando eu, mulher negra, afirmo no meu corpo elementos que são socialmente desprestigiados, o peso é diferente. No meu caso, estou resistindo a um movimento que pede a todo momento que eu alise meu cabelo e ’embranqueça’. Quando uma pessoa branca usa esses símbolos, ela não vai representar resistência ou ser excluída de nenhum espaço” , critica Mello.  

Repórter especial de Estilo e Beleza na revista Azmina, Juliana Luna lembra que, há 10 anos, ostentar cabelos afro sendo negra era uma forma de resistência, que afrontava a sociedade. “As pessoas mandavam eu lavar o cabelo, me pentear, me chamavam de ‘nega do cabelo duro'”, conta.

Hoje, ela ministra oficinas de amarração de turbantes em que aceita também pessoas brancas. Segundo ela, é uma forma de construir pontes e de “furar a bolha” por meio do diálogo. 

“A apropriação cultural não surgiu do nada, porque uma pessoa branca saiu na rua e colocou um turbante”, afirma. “A repercussão aconteceu porque as pessoas se cansaram de ver certos elementos e símbolos culturais sendo utilizados dessa maneira, sem cuidado, sem nenhum interesse. É como se você pegasse uma coisa, utilizasse aquilo e jogasse no chão quando ficasse cansada. Não é assim, que a nossa cultura e a nossa sabedoria, as coisas consideradas dentro da cultura negra como sagradas, belas e importantes devem ser utilizadas”, diz. “É como a questão do colonizador, de achar que aquilo lhe pertence, usar sem pedir licença e ainda invisibilizar o contexto histórico, social e cultural”.

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