Sociedade

Terapia de vizinhos

Brasiliana: No Rio, centros jurídicos pacificam moradores do Complexo do Alemão. Por Amanda Lourenço

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Por Amanda Lourenço

Gilson e maria Eduarda chegaram às 10 da manhã para uma reunião no Centro Jurídico do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Viviam um impasse. Os dois habitam o mesmo imóvel: dona Maria Eduarda embaixo, Gilson e sua família no andar de cima. Só que dona Maria Eduarda não gosta de ver a bicicleta do filho de Gilson estacionada na área comum, bem na entrada de sua casa.

Um dia, derrubou a bicicleta do menino. Indignado, Gilson quebrou as três caixas d’água da vizinha que ficavam em sua laje. Mais tarde, Gilson comprou três caixas d’águas novas para Maria Eduarda. Com um porém: ela não poderia mais colocá-las na laje dele.

Sem lugar para instalar as caixas, Maria Eduarda decidiu recorrer à Justiça e foi até o Centro Jurídico instalado em sua comunidade. A ideia era iniciar um processo contra o vizinho, mas os agentes perguntaram se ela não preferia entrar em uma negociação amigável e a encaminharam para o Centro de Mediação.

Conflitos como esse não são raros, ainda mais em comunidades onde o espaço é tumultuado e a convivência tende a ser mais complicada.

Antes da intervenção policial na comunidade, os próprios traficantes muitas vezes ajudavam os moradores a resolver seus problemas à moda do bandido, na base do enfrentamento e até da bala. Ao sabor, frequentemente, das preferências dos traficantes por esse ou aquele morador.

A demanda por um ordenamento da favela veio juntamente com a tentativa da reinserção das comunidades carentes na sociedade. Com a chegada das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e, no caso do Alemão, do Exército, uma nova regulamentação foi instaurada nas favelas cariocas.

Diversos programas de integração buscam atender às necessidades básicas dos moradores das favelas, há muito ignoradas. Foram criadas novas escolas, áreas de lazer, conjuntos habitacionais. E foram instalados cartórios, varas de Proteção da Infância e Juventude, postos da Defensoria Píblica e outros serviços. Mas a grande novidade é o Programa de Mediação, que usa o diálogo como principal meio de evitar que pequenos conflitos entre pessoas se transformem em processos legais pesados e custosos para os cofres públicos.

A técnica da mediação já era utilizada no Rio de Janeiro em 18 centros que funcionam em fóruns espalhados por todo o estado, mas o recurso era pouco conhecido. Nas comunidades, o programa começou há cerca de um ano e vem colhendo bons resultados. Até o momento são seis os postos instalados: Formiga, Alemão, Cidade de Deus, Batan, Santa Marta e Pavão-Pavãozinho, os dois últimos inaugurados em dezembro. Outros três estão em processo de instalação: Borel, Chapéu-Mangueira e Rocinha.

O programa foi uma iniciativa conjunta do Tribunal de Justiça do Rio e do governo fluminense, a partir de agosto de 2010. O primeiro trabalho foi capacitar policiais integrantes das UPPs para atuar como mediadores. E o programa ganhou o próprio do Instituto Inovare de 2011, associação de incentivo à modernização da Justiça no País. No Complexo do Alemão, onde não há UPP, os próprios agentes comunitários foram treinados e novas turmas estão sendo criadas.

Marconi Filardi, coordenador do Centro de Mediação do Complexo do Alemão, explica que, no início, a grande maioria dos casos era de pensão alimentícia e conflitos relacionados a uma separação. Há alguns meses as divergências entre vizinhos vêm tomando cada vez mais espaço. Boa parte das pessoas chega aos Centros de Mediação levadas pelos soldados.

O objetivo do TJ é justamente diminuir o número de processos tramitando no Judiciário: apenas em 2011 foram mais de 83 milhões, em uma média de mais de um por família brasileira. O próximo passo agora é treinar voluntários – como presidentes de associações de moradores ou até mesmo profissionais de saúde – para acelerar a resolução de pequenos desentendimentos sem a necessidade de passar pelos centros jurídicos.

Os cursos são ministrados pelo TJ, duram 40 horas e cada turma custa 3 mil reais para o governo do estado. Para tornar-se apto, o mediador também deve assistir a dezenas de negociações. A desembargadora Marilene Melo Alves, coordenadora do programa, afirma que a mediação é eficiente porque confere autonomia aos envolvidos. “As pessoas ficam orgulhosas de saber que foram elas próprias que dialogaram e chegaram a um acordo sem imposição de ninguém. Elas se sentem engrandecidas”, diz.

“De hábito, todos querem falar, mas ninguém quer ouvir. A mediação restitui essa capacidade de diálogo. Nas reuniões, as pessoas ficam aliviadas por ter a possibilidade de desabafar com a certeza de que a outra parte está ouvindo. Elas ficam mais abertas a escutar a versão do outro lado”, descreve a desembargadora.

Para Filardi, a busca pela resolução de conflitos é sintoma de um problema mais enraizado. “Quando alguém chega aqui reclamando de uma janela ou de uma antena, normalmente o problema não é a janela nem a antena, o problema é a relação entre os vizinhos que está desgastada. Tudo vira motivo de atrito.”

Gilson e Maria Eduarda estão chegando a um acordo depois de três reuniões com mediadores. O vizinho de cima propôs ceder outro espaço em seu terraço para dona Maria Eduarda instalar suas caixas d’água, mas está irredutíel em deixá-la ocupar o mesmo lugar de antes. “Sempre quis aumentar minha sala e as caixas d’água estavam atrapalhando”, argumenta. Maria Eduarda diz não estar totalmente satisfeita, mas terá de fazer um esforço em nome da boa vizinhança.

Por Amanda Lourenço

Gilson e maria Eduarda chegaram às 10 da manhã para uma reunião no Centro Jurídico do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Viviam um impasse. Os dois habitam o mesmo imóvel: dona Maria Eduarda embaixo, Gilson e sua família no andar de cima. Só que dona Maria Eduarda não gosta de ver a bicicleta do filho de Gilson estacionada na área comum, bem na entrada de sua casa.

Um dia, derrubou a bicicleta do menino. Indignado, Gilson quebrou as três caixas d’água da vizinha que ficavam em sua laje. Mais tarde, Gilson comprou três caixas d’águas novas para Maria Eduarda. Com um porém: ela não poderia mais colocá-las na laje dele.

Sem lugar para instalar as caixas, Maria Eduarda decidiu recorrer à Justiça e foi até o Centro Jurídico instalado em sua comunidade. A ideia era iniciar um processo contra o vizinho, mas os agentes perguntaram se ela não preferia entrar em uma negociação amigável e a encaminharam para o Centro de Mediação.

Conflitos como esse não são raros, ainda mais em comunidades onde o espaço é tumultuado e a convivência tende a ser mais complicada.

Antes da intervenção policial na comunidade, os próprios traficantes muitas vezes ajudavam os moradores a resolver seus problemas à moda do bandido, na base do enfrentamento e até da bala. Ao sabor, frequentemente, das preferências dos traficantes por esse ou aquele morador.

A demanda por um ordenamento da favela veio juntamente com a tentativa da reinserção das comunidades carentes na sociedade. Com a chegada das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e, no caso do Alemão, do Exército, uma nova regulamentação foi instaurada nas favelas cariocas.

Diversos programas de integração buscam atender às necessidades básicas dos moradores das favelas, há muito ignoradas. Foram criadas novas escolas, áreas de lazer, conjuntos habitacionais. E foram instalados cartórios, varas de Proteção da Infância e Juventude, postos da Defensoria Píblica e outros serviços. Mas a grande novidade é o Programa de Mediação, que usa o diálogo como principal meio de evitar que pequenos conflitos entre pessoas se transformem em processos legais pesados e custosos para os cofres públicos.

A técnica da mediação já era utilizada no Rio de Janeiro em 18 centros que funcionam em fóruns espalhados por todo o estado, mas o recurso era pouco conhecido. Nas comunidades, o programa começou há cerca de um ano e vem colhendo bons resultados. Até o momento são seis os postos instalados: Formiga, Alemão, Cidade de Deus, Batan, Santa Marta e Pavão-Pavãozinho, os dois últimos inaugurados em dezembro. Outros três estão em processo de instalação: Borel, Chapéu-Mangueira e Rocinha.

O programa foi uma iniciativa conjunta do Tribunal de Justiça do Rio e do governo fluminense, a partir de agosto de 2010. O primeiro trabalho foi capacitar policiais integrantes das UPPs para atuar como mediadores. E o programa ganhou o próprio do Instituto Inovare de 2011, associação de incentivo à modernização da Justiça no País. No Complexo do Alemão, onde não há UPP, os próprios agentes comunitários foram treinados e novas turmas estão sendo criadas.

Marconi Filardi, coordenador do Centro de Mediação do Complexo do Alemão, explica que, no início, a grande maioria dos casos era de pensão alimentícia e conflitos relacionados a uma separação. Há alguns meses as divergências entre vizinhos vêm tomando cada vez mais espaço. Boa parte das pessoas chega aos Centros de Mediação levadas pelos soldados.

O objetivo do TJ é justamente diminuir o número de processos tramitando no Judiciário: apenas em 2011 foram mais de 83 milhões, em uma média de mais de um por família brasileira. O próximo passo agora é treinar voluntários – como presidentes de associações de moradores ou até mesmo profissionais de saúde – para acelerar a resolução de pequenos desentendimentos sem a necessidade de passar pelos centros jurídicos.

Os cursos são ministrados pelo TJ, duram 40 horas e cada turma custa 3 mil reais para o governo do estado. Para tornar-se apto, o mediador também deve assistir a dezenas de negociações. A desembargadora Marilene Melo Alves, coordenadora do programa, afirma que a mediação é eficiente porque confere autonomia aos envolvidos. “As pessoas ficam orgulhosas de saber que foram elas próprias que dialogaram e chegaram a um acordo sem imposição de ninguém. Elas se sentem engrandecidas”, diz.

“De hábito, todos querem falar, mas ninguém quer ouvir. A mediação restitui essa capacidade de diálogo. Nas reuniões, as pessoas ficam aliviadas por ter a possibilidade de desabafar com a certeza de que a outra parte está ouvindo. Elas ficam mais abertas a escutar a versão do outro lado”, descreve a desembargadora.

Para Filardi, a busca pela resolução de conflitos é sintoma de um problema mais enraizado. “Quando alguém chega aqui reclamando de uma janela ou de uma antena, normalmente o problema não é a janela nem a antena, o problema é a relação entre os vizinhos que está desgastada. Tudo vira motivo de atrito.”

Gilson e Maria Eduarda estão chegando a um acordo depois de três reuniões com mediadores. O vizinho de cima propôs ceder outro espaço em seu terraço para dona Maria Eduarda instalar suas caixas d’água, mas está irredutíel em deixá-la ocupar o mesmo lugar de antes. “Sempre quis aumentar minha sala e as caixas d’água estavam atrapalhando”, argumenta. Maria Eduarda diz não estar totalmente satisfeita, mas terá de fazer um esforço em nome da boa vizinhança.

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