Sociedade

Religião, aborto e saúde pública: STF acertou em sinalizar pela descriminalização do aborto

Questão de fé se resolve com teologia e questão de saúde pública, com política

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Por Wagner Francesco

A maioria dos ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) mandou soltar cinco médicos e funcionários de uma clínica clandestina, presos em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, em uma decisão que entende não ser crime a interrupção voluntária da gravidez até o terceiro mês da gestação. 

Três dos cinco ministros que compõem o colegiado consideraram que a interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação não configura crime. O entendimento não vale para outros casos, mas abre um precedente inédito no STF sobre o tema.

Em seu voto, o Ministro Barroso argumentou que os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto no primeiro trimestre de gestação violam direitos fundamentais da mulher. As violações são, segundo o voto de Barroso, à autonomia da mulher, à sua integridade física e psíquica, a seus direitos sexuais e reprodutivos e à igualdade de gênero. “Na medida em que é a mulher que suporta o ônus integral da gravidez, e que o homem não engravida, somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da sua manutenção ou não”, escreveu o ministro sobre o direito à igualdade de gênero.

No debate sobre o aborto a maior dificuldade é de dialogar com o setor religioso – e por religioso estamos falando dos líderes religiosos e de suas instituições. O discurso geralmente é assim: “aprovar o aborto é agredir a soberania de um povo de formação majoritariamente religiosa, que, por isto mesmo, repudia tal prática.”

 Vamos acordar pra a vida real? Sim, temos um povo de formação majoritariamente religiosa e temos, segundo último dado que tive acesso, 1 milhão de mulheres abortam, de forma clandestina, no Brasil.

 A cada dois dias uma brasileira (pobre) morre por aborto inseguro, problema ligado à criminalização da interrupção da gravidez e à violação dos direitos da mulher. 

Ora, são elas, mulheres que abortam, religiosas. E veja: 1 milhão aborta de forma clandestina porque são pobres. Se contar o número de mulheres ricas que abortam em boas clínicas…

Convém atentarmos também para o fato de que a maioria dos católicos do mundo não está de acordo com algumas das principais doutrinas da Igreja como o aborto, o uso de anticoncepcionais e a proibição da comunhão para os divorciados. 

A França é o país onde mais se concorda com o aborto – sempre e em alguns casos – (93%), seguida de Espanha (88%), Itália (83%) e Polônia (82%). Na América Latina, os que mais aprovam esta forma de interrupção da gravidez – sempre e alguns casos – são os brasileiros (81%); seguidos pelos argentinos (79%), mexicanos (73%) e colombianos (61%). 

Isto indica algo pra mim – e eu sou teólogo, sei bem disto – que o que a cúpula da Igreja prega raramente é aceito pelo povo, pois não condiz com a realidade. A igreja “legisla” não em prol da vida das pessoas, mas em prol de sua própria manutenção. Quando se diz que defendendo a proibição da prática do aborto está defendendo a vida, é importante dizermos: a vida da instituição eclesiástica, seus dogmas e tradições que são mais importantes que as pessoas. 

O argumento de apelar para a religiosidade das pessoas não condiz com o que as pessoas realmente acham. Fé que permanece fé e a ciência que permanece ciência não se contradizem. É fato: a nossa fé ou crença não vai impedir as pessoas de cometerem aborto, nem de usarem drogas, nem de seja lá o que for. Não adianta o discurso de “verdade” ou “correto” porque, como dizia Schopenhauer, “o conhecimento do bem e do mal não muda a vontade de ninguém”.

Questão de fé se resolve com teologia e questão de saúde pública, com política. Não misturemos as coisas, pois o povo merece ser cuidado com as ferramentas corretas. E o legislador deve sempre se lembrar que o Direito é vivo, pois normatiza vidas e as vidas estão em constante mutação. O que era valorizado e moralmente bom ontem deixa de ser hoje – graças a Deus, né? Imagina se escravidão ainda fosse algo legítimo…

O fato é que com a nossa fé e religião, querendo ou não, as mulheres abortam e vão continuar a abortar. A questão é: a gente continua proibindo e deixando elas morrerem ou a gente descriminaliza e cuida delas? Pra mim a resposta está na cara e só não vê quem não quer… Ou não pode, porque a cegueira do fanatismo religioso impede de ver a luz.

A criminalização viola, em primeiro lugar, a autonomia da mulher, que corresponde ao núcleo essencial da liberdade individual, protegida pelo princípio da dignidade humana (CF/1988, art. 1o, III). A autonomia expressa a autodeterminação das pessoas, isto é, o direito de fazerem suas escolhas existenciais básicas e de tomarem as próprias decisões morais a propósito do rumo de sua vida. Todo indivíduo – homem ou mulher – tem assegurado um espaço legítimo de privacidade dentro do qual lhe caberá viver seus valores, interesses e desejos. Neste espaço, o Estado e a sociedade não têm o direito de interferir. (Ministro Barroso, HC 124.306, pg. 9)

Em meio a tantos erros, ponto para o STF! Viu como não dói proteger a Constituição Federal e os Direitos Fundamentais?

 Confira o voto do Ministro Barroso, que foi seguido pelos Ministros Edson Fachin e Rosa Weber.

*Wagner Francesco é Teólogo com pesquisa em áreas de Direito Penal e Processual Penal. Artigo publicado originalmente no Justificando

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