Sociedade

A prisão de Boulos, autoritarismo e o pensamento conservador

A detenção faz parte de uma estratégia de desmoralização dos movimentos sociais, um perigo imenso para a democracia

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A detenção de Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), pela polícia militar, nesta terça, 17, durante a reintegração de posse de área ocupada por cerca de 700 famílias na zona leste da capital paulista, corrobora a percepção de que estamos sob a vigência de estado autoritário, que lança mão de medidas típicas de exceção contra aqueles que a ele se opõe.

A prisão de Boulos faz parte de um movimento claro de tentativa de deslegitimação da luta por direitos e, mais ainda, de desmoralização dos movimentos sociais – o que é um perigo imenso para a democracia.

Revela ainda como os meios de persecução se sofisticam. Com a aplicação distorcida de leis penais, procura-se transformar a atividade política de oposição e reivindicação em crime, para assim descaracterizá-la.

A alegação para a prisão do líder do MTST foi que ele teria resistido e desobedecido a um policial. Lembre-se que recentemente o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), se negaram a cumprir ordens judiciais e não sofreram quaisquer consequências, o que evidencia também a seletividade no emprego da norma penal.

É sempre importante lembrar que a democracia tal qual conhecemos hoje é fruto de diversas lutas, em cujas frentes de batalha sempre estiveram os movimentos sociais.

Se hoje negros, mulheres, pobres e analfabetos têm direito ao voto, isso se deve não à providência divina, mas ao inconformismo daqueles que se organizaram de diversas formas e ofereceram resistência ao status quo.

Se racismo e homofobia são crimes hoje no nosso país, é em consequência ao ativismo de movimentos que promoveram o debate sobre as violências praticadas contra essas populações e exigiram do poder público providências efetivas para combater e punir tais agressões.

E sempre foi assim. As primeiras cartas constitucionais do mundo moderno foram elaboradas para conter avanço de direitos, e não para universalizá-los. A primeira Constituição francesa, de 1791, estabelecia o voto censitário, baseado no critério econômico, ou seja, só podiam votar aqueles que possuíssem uma determinada renda ou patrimônio. Era uma constituição burguesa, feita para assegurar os direitos da classe burguesa, e não de todo o povo.

Da mesma forma, a Constituição americana de 1787 não foi criada para ser depositária do que melhor havia na sociedade em termos de valores. Como apontado pelo professor Ricardo Marcondes Martins, a carta americana tinha por objetivo frear avanços democráticos que ocorriam nos Estados recém tornados independentes e conter leis que favoreciam, por exemplo, os pequenos proprietários.

A luta das sufragistas, no reino Unido, como se sabe, deixou de ser pacífica num determinado momento e foi duramente reprimida. Nos Estados Unidos, Luther King, Malcom X e tantas outras lideranças de movimentos pelos direitos civis dos negros foram acusados de serem grandes transtornadores da ordem.

O próprio Mandela, símbolo máximo da luta contra a segregação racial, vencedor do Nobel da paz e um dos políticos mais amados e respeitados de seu tempo, esteve por 20 anos sob o alerta vermelho da Interpol, justamente por praticar e pregar resistência ao apartheid. Mandela fundou o Umkhonto we Sizwe (MK), organização que preconizava a luta armada contra o governo racista sul-africano.

Sem a resistência e a luta dos movimentos sociais, formados por homens e mulheres que muitas vezes arriscaram a própria vida por uma causa, certamente teríamos evoluído muito pouco em termos de reconhecimento dos direitos humanos e na conquista de garantias fundamentais.

O que está por trás desse avanço de medidas autoritárias no interior da nossa democracia, que se enfraquece a cada dia, é a ilusão conservadora da presentificação, ou seja, a ideia de que é possível parar o tempo e evitar as inovações e mudanças necessárias para que o conjunto da sociedade tenha direitos mínimos, de fato, assegurados.

No entanto, aqui não se trata mais de uma lógica conservadora, mas sim autoritária. Até porque pensadores conservadores modernos como Michael Oakeshott aceitavam a ideia de reformas e se contrapunham a qualquer tipo de totalitarismo.

Para Oakeshott, aliás, o conservadorismo não se relacionava a uma ideologia, a um pensamento político, mas a uma postura diante da vida, a uma propensão em manter valores e instituições, sobretudo por desconfiar das mudanças e temer o imponderável.

No campo político, ainda que defendesse a limitação da atuação do Estado, sua ideia de “política do ceticismo” não era absolutamente inconciliável com a defesa de beneficios sociais que garantissem a dignidade humana , inclusive contribuindo para que desigualdades profundas favorecessem revoluções , que os conservadores céticos tanto criticavam

O que há de maior proximidade entre Oakeshott e o conservadorismo brasileiro dos nossos dias, tão afeito a práticas e condutas autoritárias, talvez seja o desejo de conservar aquilo que se acumulou, portanto a ideia de que se tem algo a perder. Contudo, em Oakeshott, tal sentimento está relacionado à tradição, enquanto que, na nossa sociedade, tem a ver com privilégios.

A insatisfação e o desejo de mudança, que são a tônica de qualquer movimento reivindicatório, se contrapõem ao prazer que o conservador quer gozar com aquilo que já foi conquistado e que, obviamente e em especial em sociedades muito desiguais , é bom só para ele e um grupo restrito de pessoas. Da para se compreender , embora divergindo , ingleses preferindo a fruição à mudança , numa logica de preservação da dignidade humana.

Brasileiros e povos muito desiguais não. Ou abrem mão do valor sa fruição e aderem as mudanças ou abrem mão da dignidade humana. Parte significativa de nossas elites abrem mão da dignidade humana como valor e da democracia como modelo de sociedade, aderindo as abertas à logica fascista, procurando se reivindicar como conservadores modernos .Não são, são autoritários e desumanos, algo que o conservadorismo moderno renega

Cabe a esquerda democrática e aos movimentos sociais, movimentos estes que são instituição da sociedade democrática absolutamente necessária e tão relevante quanto o Parlamento, o Judiciário e o Poder Executivo, defender as transformações que possam trazer algum sentido de equilíbrio e justiça. Não se pode falar em Estado democrático fora de uma sociedade democrática, na qual movimentos sociais resistam, reivindiquem e se manifestem livremente.

 

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