Sociedade

Precisamos falar sobre trabalho infantil

Seria deboche, não fosse outra coisa, exaltar o trabalho infantil dedicado a servir

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A profissão é, por definição, uma ponte entre a realidade, a informação e o interesse público. O profissional nem sempre anda na rua. Desconhece a própria rua. O próprio público.

E, do alto do pedestal, de onde opina sobre a conduta de vida de leitores e espectadores, acaba perdendo a noção do próprio mundo. Passa tempo demais encastelado, ocupado, talvez demais, em lamber botas de gente influente, da política ou da própria profissão, enquanto empresta o nome, ou o rosto, a um certo jornalismo de grife.

Essa espécie curiosa da natureza de vez em quando se vê obrigada a andar a pé, cair na rua, conviver com gente diversa, estranha daquela que costuma circular entre palácios e escritórios, e se assombra.

No assombro, muitas vezes recorre à escolta; em outras, desenvolve e dá vida a um certo olhar antropológico sobre os costumes dessas salas sem ar condicionado. É capaz, por exemplo, de ver beleza onde os cidadãos comuns, reais, veem exploração. Por exemplo, o trabalho infantil.

Num momento em que a ordem, entre os filhos de certa casta com um mínimo de conforto ou o máximo de privilégios, é custear a escola integral dos filhos, e pavimentar assim a argamassa para a entrada triunfal a um mercado já suficientemente seleto, seria mero deboche, não fosse outra coisa, exaltar em público a força de trabalho de uma criança de 9 e outra de 12 a auxiliarem o pai em um restaurante a servir ao figurão. A “lição” vem de outro país, como se por aqui faltasse, não sobrasse, mão-de-obra infantil.

Alguns, menos sensíveis à beleza da cena, ousaram bater no vidro, construído em formato de bolha, para dizer: “Olha, muito legal, muito bonito, mas, a se fiar pelo exemplo, que horas as crianças vão brincar ou ter direito a ser, ao menos nessa parte da vida, criança?”

A resposta da tropa veio em rajadas. Pois, por esses lados de conexões fartas e ideias escassas, só o trabalho liberta. Liberta, é fato, em certas classes, idades e contextos.

Em outras, as dedicadas a servir, muitas vezes condena: condena a passar o tempo todo ali, servindo, para embelezar os olhos de quem é servido, enquanto outros, menos libertários, se trancam em salas de estudo para concentrar o repertório exigido em vestibulares, universidades públicas, trabalho imaterial.

Desses desavisados, talvez acomodados demais com os atalhos das redes, valem sempre as altas prosopopeias acerca de conquistas pessoais, talhadas desde cedo, e a impressão de que, neste país, criança pode tudo, menos trabalhar honestamente.

(Vai ver isso explica a inclinação, quando adultos, a um certo humor infantilizado, estacionado em algum canto das infâncias e adolescências interrompidas).

Por tudo e por honestamente podemos inverter a ordem do sujeito. Por exemplo, o empregador (a quem a lei não alcança e a quem, sobre esse vácuo, cabe determinar regras, normas, expedientes).

Por exemplo, a fartura de direitos aos quais crianças e adolescentes, de quem adultos deveriam ser protegidos pelas audácias e periculosidades, têm acesso à vida real.

Não é preciso pisar nesses espaços, ali mesmo perto da Berrini. Ou visitar os campos gerais – os nossos. Uma sugestão: assistir, ao menos uma vez na vida, um pequeno documentário chamado Assalto à Gameleira, de André Patroni.

Ali podemos ter ideia sobre a ideia de “tudo” o que sobrava em direitos a crianças e adolescentes a quem só temos como solução o encarceramento, inclusive prisional. Não tiveram direito a um pai.

Não tiveram direito à proteção do alcoolismo dos responsáveis. Não tiveram direito à escuta quando denunciavam agressões e ameaças. Não tiveram direito a escapar daquela via pelo estudo ou outras atividades lúdicas tão valorizadas entre nossos iguais.

Mas os que não conhecem a lição, perdidos num mar de muitos direitos e poucos deveres além o de apanhar calados, não são nossos iguais. Estão mais longe do que os anfitriões de qualquer outro país. São de fora, mas servem de exemplo: têm como opção a jaula ou aceitar, alegremente, a perpetuação de nosso fosso. Nele, uns servem; outros são servidos. Quem gostou bate palma, vai ao Twitter e pede mais.

Em tempo

No mundo real, mais de 3,3 milhões de crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, estão em situação de trabalho infantil no Brasil, segundo levantamento feito pela Fundação Abrinq. Isso, quase sempre, significa estar fora da escola. Só 56% dos adolescentes no ensino médio estão matriculados na série correspondente à sua idade. Não há lição alguma a ser dada por quem se encanta a ver crianças ajudando os pais a trabalhar durante as férias em outro país. Por aqui não falta trabalho infantil. Sobra.

Entre as crianças de 0 e 14 anos, quase a metade (44%) encontram-se em situação de pobreza e 17%, em situação de extrema pobreza. “Lição”: em um país onde tantas crianças trabalham e têm tanto a aprender com as crianças trabalhadoras de outros países, poucas delas estão protegidas. Quase 19% dos homicídios no país são praticados contra crianças e adolescentes, sendo 80% deles com armas de fogo.

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