Sociedade

Por um Museu do Trabalho e dos Trabalhadores em São Bernardo do Campo

Candidatos a prefeito de rejeitam obra erradamente classificada por parte da imprensa como “museu sobre Lula”

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São Bernardo do Campo (SP) é, provavelmente, a cidade que melhor representa o desenvolvimento industrial moderno em nosso país. Desde os anos 1950, quando ali foram instaladas diversas montadoras automobilísticas, entre várias outras fábricas de ponta, São Bernardo adentrou o imaginário nacional como a “capital do automóvel”, um símbolo do progresso fabril e de uma nova era de desenvolvimento da nação. Ao longo das últimas seis décadas, a “Detroit brasileira” sintetizou muitas das esperanças, frustrações e desafios do capitalismo brasileiro neste período.

Mas, São Bernardo do Campo também é nacional e internacionalmente conhecida pelas lutas sociais desenvolvidas por seus trabalhadores. As famosas greves do ABC paulista no final da década de 1970 e início de 80 tiveram a cidade como epicentro e foram fundamentais para o processo de redemocratização do País com repercussões na vida social e política brasileira até os dias de hoje. Berço do chamado “novo sindicalismo”, São Bernardo tornou-se, para muitos, sinônimo de uma nova era de democracia, participação e justiça social.

No entanto, é importante lembrar que tanto São Bernardo quanto a região do ABC como um todo possuem uma longa história de industrialização que precede em muito os anos 1950. Pequenas e médias tecelagens, oficinas moveleiras, cerâmicas, e fábricas alimentícias, entre outras, passaram a dominar o cenário da região desde o final do século XIX. Também foi precoce a presença de grandes multinacionais como a Rhodia e Pirelli em Santo André e a General Motors em São Caetano do Sul.

Essa pujança industrial atraiu ao longo do tempo milhares de trabalhadores nas várias levas migratórias internacionais e nacionais que marcaram o desenvolvimento econômico do País e da região.

Paralelamente, uma longa e importante tradição de organização política e lutas sociais vem caracterizando a população do ABC paulista desde muito antes dos anos 1970. Santo André, por exemplo, foi a primeira cidade brasileira a eleger um prefeito operário em 1947, o líder comunista Armando Mazzo, cassado antes mesmo de tomar posse.

Por todas essas razões, poucos lugares são tão adequados em nosso País para a construção de um Museu do Trabalho e dos Trabalhadores (MTT), antigo sonho daqueles preocupados com a memória e história social no Brasil.

Há cinco anos, em sua primeira gestão como prefeito da cidade, Luiz Marinho (PT) resolveu levar à frente este projeto. O conceituado escritório da Brasil Arquitetura concebeu um edifício arrojado para abrigar o museu. O prédio inova, entre outras propostas, ao conceber seu próprio jardim de entrada como área expositiva pensada de forma a se integrar com o centro de São Bernardo.

Desde o princípio, o Museu do Trabalho e dos Trabalhadores (MTT), como foi batizado, foi concebido como um espaço de valorização da riqueza e da diversidade das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras comuns em seus locais de trabalho e moradia, em suas múltiplas formas de sociabilidade e de ação coletiva.

Tendo como eixos transversais as relações de gênero, étnicas e geracionais, a narrativa do MTT foi pensada de modo a proporcionar uma reflexão crítica sobre o passado e presente dos trabalhadores da cidade, da região e do País, e incorporar as experiências concretas da população do ABC.

Articulando variados elementos da cultura material com os mais modernos recursos tecnológicos, a exposição de longa duração do MTT foi dividida em quatro módulos. Os espaços de chegada ao museu, que compõem o módulo I, são destinados a tematizar tanto as relações entre mobilidade e trabalho quanto a diversidade dos sujeitos envolvidos nesses processos e de suas concepções sobre o trabalho.

O módulo II oferece aos visitantes múltiplos estímulos sensoriais que evocam diversas experiências dos trabalhadores em seus locais de trabalho, com destaque para aqueles representativos da história do ABC paulista.

O terceiro módulo explora diferentes aspectos da cultura e do cotidiano da classe trabalhadora, em especial as dimensões da vida privada e comunitária. Por fim, o último módulo aborda as diversas dimensões da vida associativa, política e as lutas sociais que marcaram a trajetória do mundo do trabalho.

Lamentavelmente, a assim chamada grande imprensa tem privado seus leitores desses elementos fundamentais sobre a concepção do MTT e se empenhado em desinformá-los ao enfatizar a falsa ideia de que o museu seria prioritariamente sobre o ex-presidente Lula. Um exemplo recente é a matéria da Folha de S. Paulo (“Candidatos a prefeito em São Bernardo rejeitam museu sobre Lula” de 10/9/2016).

O texto causa indignação a quem, como eu, tem trabalhado na proposta do museu desde seu início. E é desrespeitoso com as dezenas de profissionais e acadêmicos, de várias universidades brasileiras e estrangeiras, que colaboraram na construção deste projeto.

Ao reproduzir a informação errada de que se trata de um “Museu do Lula”, a reportagem é, infelizmente, um excelente exemplo do que há de pior no jornalismo brasileiro atual com sua perigosa mistura de parcialidade, ignorância e preguiça investigativa. Nem a Secretaria de Cultura de São Bernardo, nem os responsáveis pelo projeto ou pela produção do Museu sequer foram procurados pela jornalista.

E, como visto, informações essenciais para a compreensão da proposta do Museu foram sonegadas, corroborando uma ideia absolutamente equivocada de que o Museu é iniciativa meramente político-partidária e de culto à personalidade.

Assim como outros museus similares no mundo (vide, por exemplo, o bem sucedido Pump House: People’s History Museum em Manchester, Inglaterra), a presença do MTT em São Bernardo do Campo terá um importante impacto educacional e cultural, com repercussões urbanísticas e econômicas, inclusive no campo do turismo para toda a região do ABC.

Sua existência deve ser motivo de orgulho e alegria para a população local. E todos os candidatos a prefeito deveriam conhecer o projeto do museu antes de apresentar propostas grotescas. Quem sabe assim seria possível firmar um amplo compromisso público no sentido de garantir que o Museu do Trabalho e dos Trabalhadores possa abrir suas portas o mais rapidamente possível.

*Paulo Fontes é historiador e professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV)

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