Cultura

Os tenores de chuveiro

Nos filmes de Woody Allen, a chance de mudar de vida e colher os louros da glória é sempre tentadora. Mas ninguém, de perto, é sublime

O agente funerário de vida ordinária se transforma em tenor quando canta no chuveiro
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Parece parte do roteiro: ao fim da sessão, todos adoram dizer que o novo filme de Woody Allen é um trabalho “menor”, incomparável com os velhos e bons Annie Hall (1977), Manhattan (79) ou outros clássicos baseados em Nova York. Pela lógica, desde o fim da década de 80 o cineasta corre em ritmo decrescente rumo ao total desaparecimento.

É sempre bom desconfiar dos saudosistas, por isso cheguei ao cinema vacinado antes de conferir Para Roma com Amor. Para minha surpresa, encontrei um dos melhores filmes da safra europeia do diretor (superior, inclusive, a Meia Noite em Paris). A começar pelo fato de o ator-diretor estar lá, com as velhas teimosias e neuroses, e cercado por alter egos impagáveis interpretados por Alec Baldwing, Roberto Benigni e Jesse Eisenberg.

Fiquei sem entender a bronca de alguns fãs – talvez motivada por quem esperava ler um romance e se deparou com um livro de contos. A cautela se justificava: aos 76 anos, Allen à primeira vista parecia indisposto a rodar quatro filmes diferentes sobre quatro histórias diferentes e resolveu colocar tudo num mesmo pacote. Uma jogada arriscada, de fato, mas com um trunfo indiscutível: boas histórias valem por si, sejam elas contadas em dez minutos ou 1001 noites. Em outras palavras, Allen lançou pelo cinema uma engenhosa coletânea de contos, todos eles com sua marca: o casal do interior que chega a Roma em busca de trabalho, o pequeno burguês comum que de repente se descobre uma celebridade, o arquiteto consagrado que revisita velhos amores ou o agente funerário que se transforma em tenor ao cantar no chuveiro.

Todos eles têm algo em comum. Todos estão numa área de conforto em suas vidas até a rotina ser quebrada de forma repentina. Como em praticamente toda a obra de Woody Allen, o elemento novo sempre aparece envolto de uma aura extraordinária: o ator consagrado, a prostituta de macetes inacabáveis (na forma de Penélope Cruz, diga-se), a visitante de referências mil, a fama que bate a porta.

A pista é lançada logo no começo, quando, ao chegar a um hotel de Roma para acompanhar o marido numa entrevista de emprego, Milly, personagem interpretada por Alessandra Mastronardi, olha para o espelho e demonstra incômodo com o cabelo. “Estou parecendo uma professora do interior”, diz a personagem antes de sair pela capital em busca de um salão de belezas que a retire da própria personagem. Milly, afinal, é professora. E é do interior.

É como se a saída da área de conforto (o hotel) em busca de um verniz inexistente mudasse o roteiro que a vida estável ao lado do marido reservava à personagem. O mesmo acontece com o casal que recebe a visita de Monica (Ellen Page), um furacão que levará dúvida e tentações à calmaria da vida a dois. Ou quando Jerry (Allen) promete levar ao estrelato o agente funerário candidato a tenor. Ou quando Leopoldo (Benigni) passa a ser perseguido por paparazzi interessados em destrinchar sua vida de homem comum – confiável e pouco interessante.

A chance de mudar de vida, experimentar novas vestes e colher os louros da glória é sempre uma saída pela tangente tentadora. A consequência é o deslumbre. Nessa, poucos sabem desmistificar a afetação como o diretor: sempre que tentam subir na vida (o upgrade do linguajar corporativo), os personagens estão na verdade caminhando iludidos sobre uma presunção prestes a ser desmascarada. Parece claro, menos para Milly, que o ator a tentar conquistá-la não é lá grande coisa – mas ela parece inebriada pela aura da fama e a conversa de quem promete virar seu mundinho de ponta-cabeça. Da mesma forma, parece claro que Monica está só interpretando uma personagem mais culta, mais interessante e mais devassa que na verdade é. E que talvez a vida de Brad Pitt e Angelina Jolie seja menos extraordinária que a de qualquer cidadão ordinário. E que o mundo nada perde por esperar nossa cantoria debaixo do chuveiro: os circuitos de consagração estão todos fora de casa, e essa é a única diferença entre ser anônimo ou sublime. A voz e o chuveiro são exatamente os mesmos.

Aos olhos de Woody Allen toda presunção parece desnuda em Para Roma com Amor. É como se todos estivessem no espelho repetindo Alvaro de Campos em sua Tabacaria: “não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.

É da vontade inconfessável de sermos outros que brotam as tentações e fissuras incompatíveis com os valores consagrados das instituições pré-moldadas, como a família, a religião, o meio social, enfim. Não por acaso, os personagens estão em Roma, cidade em que o novo e o tradicional se sobrepõem em cada cruzamento, como se a essência a ser preservada fosse colocada a prova a todo momento.

Essa contradição, tão peculiar à alma humana, é o que move os personagens desde a estreia de Allen no cinema. Eles só mudaram de nome e cenário. Basta ver a velha Diane Keaton e sua Mary Wilkie, de Manhattan, presentes em praticamente todos os trejeitos da jovem Monica. Da mesma forma, é Allen puro cada passo do arquiteto vivido por Baldwing em direção ao seu passado. O encontro dele com ele mesmo na capital italiana não é capaz de provocar a redenção: se tivesse outra chance, erraria tudo de novo. E igual. Porque o novo, mesmo quando já conhecido, é sempre mais. Como nos “tempos áureos”, segue provocando estragos em todos os alter egos de um cineasta revigorado em seu próprio tempo.

 

Parece parte do roteiro: ao fim da sessão, todos adoram dizer que o novo filme de Woody Allen é um trabalho “menor”, incomparável com os velhos e bons Annie Hall (1977), Manhattan (79) ou outros clássicos baseados em Nova York. Pela lógica, desde o fim da década de 80 o cineasta corre em ritmo decrescente rumo ao total desaparecimento.

É sempre bom desconfiar dos saudosistas, por isso cheguei ao cinema vacinado antes de conferir Para Roma com Amor. Para minha surpresa, encontrei um dos melhores filmes da safra europeia do diretor (superior, inclusive, a Meia Noite em Paris). A começar pelo fato de o ator-diretor estar lá, com as velhas teimosias e neuroses, e cercado por alter egos impagáveis interpretados por Alec Baldwing, Roberto Benigni e Jesse Eisenberg.

Fiquei sem entender a bronca de alguns fãs – talvez motivada por quem esperava ler um romance e se deparou com um livro de contos. A cautela se justificava: aos 76 anos, Allen à primeira vista parecia indisposto a rodar quatro filmes diferentes sobre quatro histórias diferentes e resolveu colocar tudo num mesmo pacote. Uma jogada arriscada, de fato, mas com um trunfo indiscutível: boas histórias valem por si, sejam elas contadas em dez minutos ou 1001 noites. Em outras palavras, Allen lançou pelo cinema uma engenhosa coletânea de contos, todos eles com sua marca: o casal do interior que chega a Roma em busca de trabalho, o pequeno burguês comum que de repente se descobre uma celebridade, o arquiteto consagrado que revisita velhos amores ou o agente funerário que se transforma em tenor ao cantar no chuveiro.

Todos eles têm algo em comum. Todos estão numa área de conforto em suas vidas até a rotina ser quebrada de forma repentina. Como em praticamente toda a obra de Woody Allen, o elemento novo sempre aparece envolto de uma aura extraordinária: o ator consagrado, a prostituta de macetes inacabáveis (na forma de Penélope Cruz, diga-se), a visitante de referências mil, a fama que bate a porta.

A pista é lançada logo no começo, quando, ao chegar a um hotel de Roma para acompanhar o marido numa entrevista de emprego, Milly, personagem interpretada por Alessandra Mastronardi, olha para o espelho e demonstra incômodo com o cabelo. “Estou parecendo uma professora do interior”, diz a personagem antes de sair pela capital em busca de um salão de belezas que a retire da própria personagem. Milly, afinal, é professora. E é do interior.

É como se a saída da área de conforto (o hotel) em busca de um verniz inexistente mudasse o roteiro que a vida estável ao lado do marido reservava à personagem. O mesmo acontece com o casal que recebe a visita de Monica (Ellen Page), um furacão que levará dúvida e tentações à calmaria da vida a dois. Ou quando Jerry (Allen) promete levar ao estrelato o agente funerário candidato a tenor. Ou quando Leopoldo (Benigni) passa a ser perseguido por paparazzi interessados em destrinchar sua vida de homem comum – confiável e pouco interessante.

A chance de mudar de vida, experimentar novas vestes e colher os louros da glória é sempre uma saída pela tangente tentadora. A consequência é o deslumbre. Nessa, poucos sabem desmistificar a afetação como o diretor: sempre que tentam subir na vida (o upgrade do linguajar corporativo), os personagens estão na verdade caminhando iludidos sobre uma presunção prestes a ser desmascarada. Parece claro, menos para Milly, que o ator a tentar conquistá-la não é lá grande coisa – mas ela parece inebriada pela aura da fama e a conversa de quem promete virar seu mundinho de ponta-cabeça. Da mesma forma, parece claro que Monica está só interpretando uma personagem mais culta, mais interessante e mais devassa que na verdade é. E que talvez a vida de Brad Pitt e Angelina Jolie seja menos extraordinária que a de qualquer cidadão ordinário. E que o mundo nada perde por esperar nossa cantoria debaixo do chuveiro: os circuitos de consagração estão todos fora de casa, e essa é a única diferença entre ser anônimo ou sublime. A voz e o chuveiro são exatamente os mesmos.

Aos olhos de Woody Allen toda presunção parece desnuda em Para Roma com Amor. É como se todos estivessem no espelho repetindo Alvaro de Campos em sua Tabacaria: “não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.

É da vontade inconfessável de sermos outros que brotam as tentações e fissuras incompatíveis com os valores consagrados das instituições pré-moldadas, como a família, a religião, o meio social, enfim. Não por acaso, os personagens estão em Roma, cidade em que o novo e o tradicional se sobrepõem em cada cruzamento, como se a essência a ser preservada fosse colocada a prova a todo momento.

Essa contradição, tão peculiar à alma humana, é o que move os personagens desde a estreia de Allen no cinema. Eles só mudaram de nome e cenário. Basta ver a velha Diane Keaton e sua Mary Wilkie, de Manhattan, presentes em praticamente todos os trejeitos da jovem Monica. Da mesma forma, é Allen puro cada passo do arquiteto vivido por Baldwing em direção ao seu passado. O encontro dele com ele mesmo na capital italiana não é capaz de provocar a redenção: se tivesse outra chance, erraria tudo de novo. E igual. Porque o novo, mesmo quando já conhecido, é sempre mais. Como nos “tempos áureos”, segue provocando estragos em todos os alter egos de um cineasta revigorado em seu próprio tempo.

 

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