Sociedade

O zika e o bilhete da sobrevivência

Tayane foi afetada pela doença e nasceu com microcefalia. A mensagem de dona Suzy, sua mãe, é o rosto da desigualdade brasileira

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O bilhete é verdadeiro. Não é papel perdido, é desespero de gente nordestina. Foi escrito por dona Suzy da Silva Paiva, uma jovem mulher de Monteiro, cidade do Cariri da Paraíba, uma das terras do zika.

Dona Suzy fez as contas com o salário do marido, o senhor Francisco de Assis Bezerra Júnior: listou na ponta do lápis as despesas da casa – aluguel, leite, fralda, água e energia. A família seguiu os conselhos dos especialistas em economia doméstica, por isso tomou nota dos gastos. No final, resignou-se à realidade: “=151,00 resta”, escreveu.

Dona Suzy errou nas contas. Não na matemática da subtração, pois Francisco ganha mesmo um salário mínimo, trabalha como operário. O aluguel é este: R$250,00; a energia custa uma inexplicável fortuna, e preciso esclarecer que não há ar-condicionado na casa de dois quartos.

O leite é diferente, pois a criança precisa de comida especial. A família foi vítima da epidemia que assolou multidões em 2015, quando dona Suzy estava grávida. Tayane é criança ainda de colo e foi afetada pelo vírus zika. Nasceu com microcefalia, tem convulsões e necessita de muitos cuidados para estimulação precoce.

Uma vez por semana, d. Suzy percorre 344 km para que a filha faça meia hora de fisioterapia em Campina Grande. Cinco horas de viagem para meia hora de consulta.

Li o bilhete de dona Suzy no grupo de famílias afetadas pelo zika na Paraíba. Ela dizia, abaixo da imagem: “Não sei se dou risada, ou se choro. E ainda vem o governo e fala que podemos, sim, viver com um salário mínimo do meu marido, e nega o benefício de minha filha! E aí eu pergunto: como faço para comprar os remédios, pagar o gás? Indignada, revoltada.”

Não é para risada nem choro, é para desespero. As contas estão erradas e não são as de dona Suzy, mas as do governo federal, que olha para migalhas dos pobres, ao invés de olhar para os privilégios dos ricos.

Não há ajuste fiscal que justifique esquecer as contas de dona Suzy – ali só há sobrevivência de uma família, injustamente afetada por uma epidemia.

Desde fevereiro deste ano, a família de Suzy tenta o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para a filha com deficiência. Já se submeteu às perícias médica e social, recebeu em sua casa visitas de técnicos que abriram armários e fotografaram sua pobreza.

Ou melhor, dona Suzy me explicou que eles queriam comprovar “a miserabilidade da família”. No final, sua história foi reduzida a uma fórmula patética: uma família que conta com um salário mínimo para três pessoas não é família miserável, argumenta o INSS.

O BPC foi negado para Tayane. Dona Suzy buscou advogado pela primeira vez na vida, fez acordo de 30% dos atrasados se ganhasse a ação. Um juiz considerou que não deveria ser a conta patética a valer, mas as necessidades de vida da família, e concedeu o benefício. O INSS recorreu.

Dona Suzy errou no bilhete. Isso de escrever, ao final, “=151,00 resta.” está muito errado. Não tem ponto final nem resto para a sobrevivência da família. Na lista não está o medicamento anticonvulsivante da filha, não está o transporte, não está a comida.

Como eles vivem? Não sei. Mas o órgão responsável pela proteção social no Brasil também não sabe e preferiu ignorar as contas da família. A fórmula patética de que somente famílias com renda de um quarto de salário mínimo por pessoa possam receber o BPC é cínica e injusta.

É critério que acalma as calculadoras do Planalto Central, de burocratas que desconhecem o que é sobreviver na pobreza nordestina. Dona Suzy trabalhava antes da gravidez de Tayane, mas a criança exige cuidados ininterruptos e a família não faz parte das elites urbanas com babás vestidas de branco para sessões de estimulação precoce diárias.

O bilhete de dona Suzy deve nos causar incômodo, pois é o rosto da desigualdade brasileira. Espero que cause pesadelos sem direito a ansiolítico de tarja preta nos burocratas que revisam as políticas sociais em tempos de ajuste fiscal caótico para arrumar as contas do país.

Dona Suzy não faz parte dos que ganham salários acima do teto do funcionalismo público ou dos que escondem fortunas no exterior. Ela continua esperando, como fizeram seus antepassados no tempo dos engenhos ou dos retirantes, que este país se envergonhe de ser um dos mais desiguais do mundo.

 

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